Esporte e incentivo ao esporte no Brasil

sábado, 17 de outubro de 2020

"Ante a história tomam-se duas atitudes: a dos que consideram que o homem é apenas um efeito, e a dos que consideram uma causa. Em outras palavras: ou nós somos um produto da história ou a história é um produto do homem."   -   Mário Ferreira dos Santos   -   Filosofia da crise


A prática de esportes é bastante antiga e remonta, provavelmente, à época em que se estabeleceram os primeiros agrupamentos humanos organizados politicamente, como as cidades-estado, os reinos e impérios. Inicialmente, a prática esportiva tinha como principal objetivo valorizar as aptidões para a caça e a luta em batalhas. Baixos-relevos assírios mostram soberanos caçando, enfrentando leões e lutando em batalhas. No antigo Egito, os esportes já eram praticados de forma regular, com o propósito de exercitar e fortificar o corpo e manter a saúde. O pugilato, a natação e os campeonatos de caça e pesca eram praticados em muitas cidades ao longo do Nilo.

Foram, porém, os gregos que diversificaram e sistematizaram a prática esportiva, como fim em si mesmo, organizando os primeiros campeonatos esportivos dos quais se tem notícia. Através de um acordo de paz selado no ano de 776 a.C., entre diversos reis que estavam constantemente em guerra, foram criados na cidade de Olímpia os Jogos Olímpicos gregos. Enquanto durasse o torneio, todas as atividades bélicas eram suspensas, permitindo que todos os cidadãos capacitados da Grécia pudessem treinar e participar deste grande festival esportivo. Os jogos aconteciam no verão, nos meses de julho e agosto, e eram dedicados a Zeus, no caso das competições masculinas, e a Hera, nos torneios para as mulheres.

As práticas esportivas gregas entraram em decadência, junto com sua civilização. Os romanos, sucessores culturais dos helenos, mantiveram a realização das competições esportivas e valorizavam a prática dos exercícios físicos, especialmente as classes mais abastadas e instruídas, influenciadas pela cultura grega. Na Roma clássica, era famosa a citação atribuída ao poeta romano Juvenal (55-127 d.C.): Mens sana in corpore sano (uma mente sã em um corpo são); parte de um poema sobre o que as pessoas deveriam valorizar na vida. Mas Roma se destacou principalmente pela prática do esporte voltado às atividades guerreiras e aos espetáculos no circo romano, como as lutas entre gladiadores e com animais selvagens, até as batalhas navais.

Na Idade Média, de forma geral, a prática do esporte era pouco valorizada. A forte influência da religião cristã, com sua doutrina de menosprezo do corpo, tido como instrumento do pecado, fez com que as atividades esportivas públicas fossem desaprovadas. Os medievais, notadamente a partir do século XI, organizavam torneios de combates entre cavaleiros armados com lanças e espadas; técnicas de treinamento para batalhas que travariam entre si e contra os árabes muçulmanos, durante as Cruzadas.

É interessante apontar a relação entre o desenvolvimento do capitalismo industrial, a migração de grandes contingentes populacionais do campo para as cidades e o aumento do sedentarismo em parte da população. Longe da vida ao ar livre do campo, morando em bairros com pouco espaço, em habitações impróprias, os operários tinham poucas oportunidades para qualquer atividade física, afora o monótono trabalho na fábrica. Friedrich Engels descreve esta situação em detalhes, principalmente entre os operários, no seu clássico A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. A poluição do ar e as péssimas condições de higiene e saneamento nos grandes centros industriais da época, como Londres, Paris, Nova York, Manchester, também contribuíram para que médicos se preocupassem crescentemente com os “miasmas”; odores fétidos originados em solos contaminados e matéria em putrefação. Segundo a medicina da época, estas emanações causavam diversas doenças (a teoria microbiana ainda não era conhecida); daí a necessidade de se afastar de tais emanações, exercitar o corpo e colocá-lo em contato com o ar puro, longe dos locais contaminados. Não é coincidência que os primeiros parques públicos fossem construídos em zonas estratégicas das grandes cidades, destinados ao lazer dos trabalhadores, como o Central Park, em Nova York, o Bois de Boulogne, em Paris e o Parque da Luz, em São Paulo.  

Historicamente, a prática dos esportes como atividade de lazer – e não como treinamento de soldados e policiais – quase sempre foi uma ocupação exclusiva das elites econômicas e dos nobres. No entanto, com a conquista de diversos direitos pelas classes trabalhadoras, ao longo do desenvolvimento do capitalismo industrial na segunda metade do século XIX, incluindo menos horas de trabalho e melhores salários (mas ainda longe de condições aceitáveis), fez com que se ampliassem as opções de lazer dos trabalhadores. A prática esportiva organizada como atividade recreativa, historicamente exclusividade das elites econômicas, começa a se difundir nas regiões mais populosas e industrializadas. Assim, na Inglaterra e em outros países industrializados da Europa no final do século XIX, começam a se organizar clubes para a prática do futebol, do rúgbi e outros esportes de apelo popular. Formam-se os clubes de ginástica e a prática da atividade física passa a ser incorporada às escolas e às políticas públicas de muitos governos.

Retoma-se assim, no final do século XIX, o ideal grego de valorização dos esportes como formadores do caráter e da saúde do indivíduo e instrumento de fomento à uma convivência harmoniosa entre os povos e as nações do planeta. Foi o francês Pierre de Fredy, o Barão de Coubertin (183-1937), quem depois de uma visita a colégios dos Estados Unidos e da Inglaterra, propôs melhorar o sistema de educação através do incentivo às práticas esportivas. Para isso, decidiu retomar o ideal grego dos Jogos Olímpicos, divulgou a ideia entre os principais governos da Europa e, em 1896, conseguiu organizar a primeira Olimpíada dos tempos modernos, simbolicamente realizada em Atenas, na Grécia.

O Brasil não participou das primeiras cinco edições dos Jogos Olímpicos, tendo começado sua participação regular a partir de 1920, com uma ausência ainda na Olimpíada de Amsterdã em 1928. Nossa melhor participação foi na Olimpíada de 2016, realizada no Rio de Janeiro. Ao longo dos vários torneios, o país nunca chegou a ganhar um grande número de medalhas, destacando-se, porém, na vela (7 medalhas de ouro e 3 de prata), no atletismo (5 ouro e 3 prata), no vôlei (5 e 3), no judô (4 e 3), e no vôlei de praia (3 e 7). No futebol, nossos times amadores não tiveram tanto sucesso, tendo obtido apenas 1 medalha de ouro e 5 de prata.

O número de vitórias brasileiras nas Olimpíadas e em outros torneios esportivos poderia ser bem maior, considerando o tamanho da população e as condições climáticas favoráveis para a prática de esporte ao ar livre, durante todo o ano. No entanto, para melhorar a participação brasileira neste tipo de atividade, falta-nos, como em muitas outras áreas, uma estratégia com metas, planejamento e efetiva execução – não esquecendo o aspecto principal: alocar recursos para tal tipo de iniciativa.

No entanto, quando constatamos que nem um terço das escolas dos 5.570 municípios brasileiros dispõem de aparelhos esportivos como quadras, vestiários, equipamentos e materiais – insto sem falar em piscinas ou pistas de treinamento para corridas – vemos que a prática esportiva e a formação de atletas não estavam e não estão nos planos de nossos ministérios de Educação e Esportes. O descaso já chegou a tal ponto, que o governo do presidente Bolsonaro extinguiu o Ministério dos Esportes. Nas escolas, a matéria “educação física” é pouco valorizada e chegou-se a considerar sua eliminação do currículo escolar. Segundo reportagem do site G1, publicada em agosto de 2020 e baseada em uma pesquisa realizada entre 1.500 escolas no país, identificou-se que em 9% das instituições de ensino entrevistadas a educação física não é obrigatória e em 2% não há nenhuma oferta de atividade esportiva. A disciplina é ministrada duas vezes por semana em 76% das escolas e somente 12% das instituições oferecem a atividade três ou mais vezes por semana.

A grande maioria das cidades brasileiras não dispõe de número suficiente de aparelhos esportivos, parques ou clubes públicos, onde a população possa praticar algum tipo de esporte em condições adequadas. O resultado disso é que nas cidades maiores e nas capitais, os parques municipais, que também não possuem instalações adequadas para a prática de esportes, fiquem apinhados de pessoas, deixando de ser locais de lazer. Quando existe alguma infraestrutura, trata-se geralmente de um ginásio de esportes em mal estado de conservação ou um campo de futebol, de uso exclusivo de um grupo de esportistas da região. Em suma, administrações públicas, via de regra, têm pouca consideração com a prática de esportes e com o lazer dos cidadãos. O que sobra como opção de prática esportiva são os clubes particulares, geralmente frequentados por pessoas de alto poder aquisitivo, nos quais a frequência é praticamente impossibilitada ao cidadão comum, dados os preços proibitivos das mensalidades, joias, taxas de manutenção, estacionamento, etc.

Enquanto o atual governo federal cortou 49% das verbas destinadas aos investimentos em esportes em 2020, o Brasil é um dos maiores exportadores de jogadores de handebol, futebol, basquete e de atletas de diversas modalidades, que não encontram incentivo para continuarem com suas carreiras por aqui. Desde sempre são comuns os dramas de conceituados ginastas ou nadadores, que não recebem qualquer incentivo financeiro, precisando e pedir contribuições através dos meios de comunicação ou das redes sociais, para poderem participar de algum torneio no exterior.

A conclusão a que se chega é que também nesta área, a dos esportes, a administração atual aposta na “mão invisível do mercado”, como promotor da prática esportiva no pais. Há, no entanto, uma falácia por trás deste raciocínio: o mercado não está preocupado em incentivar o desenvolvimento de qualquer área esportiva em si. O que o capital quer e faz – e este é o seu papel no sistema capitalista – é patrocinar atividades, atletas, clubes, etc., que possam resultar em lucro, de preferência a curto prazo. Não é por outra razão que os programas ditos “esportivos”, que pululam nas programações das TVs abertas todos os dias na hora do almoço e à noite, nas quartas-feiras à noite, nos sábados e nos domingos de tarde e à noite, falam quase exclusivamente de futebol. Futebol é no momento o único esporte que está trazendo algum retorno financeiro aos investidores – seja no merchandising das camisas dos jogadores (e outros objetos), nos eventos dos times ou nos anúncios durante a programação da TV. 

Este é o quadro que se apresenta há anos. A crise econômica que o país atravessa desde 2014 e que se aprofundou com a pandemia do coronavirus, tornou tudo mais difícil e com menos perspectivas. Enquanto o esporte, desde a escola até as Olimpíadas ou os campeonatos esportivos, for encarado apenas como uma questão de negócio, sem nenhuma visão estratégica de promoção do país e de seu potencial, não haverá mudanças. Se o Estado não assumir seu papel obrigatório de incentivar, organizar, apoiar e custear todos as práticas esportivas - no mínimo aquelas do esporte caracteristicamente  amador - seja nas escolas e através de outras instituições, permaneceremos sendo o eterno "país do futebol". E mesmo esse, de qualidade regular. 


(Imagens: pinturas de Rosalyn Drexler) 

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