Cidades: crescimento e memória

sábado, 20 de agosto de 2022

 

"O tempo não é. Dá-Se o tempo."   Martin Heidegger   -   O fim da filosofia ou a questão do pensamento   


“Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito. Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes”.  Monteiro Lobato, Cidades Mortas 

 

Ao longo da história da civilização, a maior parte da população mundial sempre viveu no campo. As cidades foram o centro administrativo, comercial e religioso, ao qual as populações se dirigiam para resolver pendências jurídicas, comprar e vender víveres e utensílios de uso diário ou cultuar os deuses. Daí a tradição, presente ainda hoje em diversas partes do planeta, das festas religiosas e das feiras de produtos; quando camponeses, comerciantes, peregrinos, artesãos, artistas de rua vêm aos centros urbanos para negociar, rezar, se divertir e saber das novidades.

Esta imagem típica da cidade permaneceu por quase toda a história da civilização, desde os primeiros centros urbanos na antiga Suméria, passando pelas cidades espalhadas nos grandes impérios e pelas cidades medievais europeias, até chegar ao começo da industrialização, no final do século XVIII. No Brasil colonial e imperial era comum que pessoas de posses – o que neste período histórico significava dedicar-se à agricultura e pecuária, sendo dono de terras e de escravos – morassem em suas propriedades rurais e mantivessem também uma residência confortável na cidade. Caso típico de aglomerações urbanas como as antigas São Paulo e Campinas, que recebiam grande número de visitantes – hoje poderíamos dizer turistas – por ocasião das feiras e das festas religiosas. Passadas estas datas, as cidades voltavam à sua morosidade habitual.

A industrialização mudou completamente este quadro. Se já desde o final da Idade Média, na Europa, havia uma tendência dos camponeses se deslocarem para as cidades a fim de trabalharem nas oficinas de artesãos, com a chegada da mecanização do processo de produção de bens este migração do campo para a cidade se acelerou ainda mais. Na Inglaterra, por exemplo, a ocupação pelos grandes proprietários das terras de cultivo comunitário usadas pelos camponeses – as Leis de Cercamento – a partir do século XVI, e de forma mais acentuada no século XVIII, fez com que ocorressem grandes fluxos populacionais para os centros urbanos.

De maneira semelhante, camponeses sem terra na Alemanha, França e Itália mudaram-se para os centros urbanos industriais durante o século XIX, à procura de melhores condições de vida, nem sempre encontradas. A industrialização dos Estados Unidos, que também teve início no século XIX, foi bastante impulsionada pela chegada de imigrantes europeus; muitos dos quais tinham conhecimentos profissionais e já haviam sido operários em seus países de origem. O mesmo ocorreu em parte com o desenvolvimento da indústria no Brasil, notadamente na cidade de São Paulo, que recebeu grande número de imigrantes italianos e espanhóis entre o final do século XIX e início do século XX, aumentando a população da cidade.

Há cerca de cem anos, o número de pessoas que viviam em centros urbanos com mais de 20 mil habitantes chegava aos 250 milhões; o equivalente a 13% da população do planeta à época. Comparativamente em 2020, segundo estatísticas da Organização das Nações Unidas (ONU), as aglomerações urbanas já acomodam 4,4 bilhões de pessoas; o equivalente a 56,2% da população mundial naquele ano. A previsão da instituição é que a população urbana mundial chegue a 68,4% dos habitantes do mundo até 2050. Apesar das condições de melhoria no campo, com a facilidade de transporte e comunicação e o relativo acesso a grande parte das comodidades disponíveis nas cidades, a vida urbana continua atraindo grandes contingentes populacionais, principalmente nos países pobres e em desenvolvimento. Melhores condições de estudo, assistência médica especializada, trabalho melhor remunerado, ascensão profissional e social, são os grandes atrativos para a maior parte dos migrantes.

No Brasil o processo de migração interna teve seu auge entre as décadas de 1940 e 1980, quando aproximadamente 40 milhões de brasileiros se deslocaram das regiões rurais para os centros urbanos, principalmente do Nordeste para o Sudeste, com destino às regiões metropolitanas – Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo – onde havia grande demanda de mão de obra nos setores de serviços e na indústria (São Paulo e municípios adjacentes). Com isso o número de cidades e seu crescimento se acelerou. Enquanto que a população total do país aumentou de 70,2 milhões de indivíduos em 1960 para 209,3 milhões em 2020, a população urbana aumentou de 44% para 85% do total da população do país. Foi durante estas seis décadas, que a gradual industrialização e o desenvolvimento dos serviços públicos e benefícios sociais (saúde, leis trabalhistas, educação, vacinação em massa, saneamento, habitação, etc.) permitiram um acentuado incremento nas atividades e, consequentemente, no aumento do número de centros urbanos no Brasil:

                                              

       Número de  Municípios                                               Ano

     641                                                             1872

                       1.120                                                             1900

                       1.219                                                             1911

                       1.303                                                             1920

                       1.365                                                             1933

                       1.574                                                             1940

                       1.890                                                             1950

                       2.766                                                             1960

                       3.953                                                             1970

                       3.991                                                             1980

                       4.601                                                             1991

                       5.572                                                             2010

 

Observa-se um acentuado crescimento no número de municipalidades a partir da década de 1950, quando se evidencia a industrialização e o processo das migrações internas. 

O processo de industrialização do país propiciou que se formasse uma classe média urbana mais ampla, baseada nos empregos oferecidos pela indústria e pelo setor de serviços, cujo número e variedade aumentou ao longo dos anos 1950-1980, incorporando parte considerável dos brasileiros à economia capitalista urbana. O aumento da população e da renda média fez com que as cidades de menor porte e de importância secundária também se desenvolvessem, incorporadas à economia através das comunicações, transportes, serviços bancários, comércio, modernização das máquinas administrativas do Estado, chegada de indústrias, melhoria da estrutura de ensino e de saúde, turismo e serviços relacionados.

A afluxo das estruturas trazidas pelo desenvolvimento econômico-social também provocou mudanças na paisagem urbana e na arquitetura das cidades. Prédios históricos, localizados em zonas centrais são removidos para dar lugar a novas construções, geralmente destinadas ao comércio (supermercados, grandes lojas, estacionamentos); antigas residências são remodeladas ou derrubadas, substituídas por outras construções com fins diversos (escritórios, pequenas lojas, bares e restaurantes). Ruas são alargadas ou abertas, dependendo do grau de urbanização anterior da cidade. Muitas vezes, estas intervenções urbanas são executadas com pouco ou nenhum planejamento, ocorrendo ao sabor dos interesses econômicos do momento, da especulação imobiliária. Residências originárias, localizadas em zona central da cidade e dispondo de grandes terrenos são demolidas, tendo sua área loteada, dividida em terrenos menores, o mesmo acontecendo com lotes ainda desocupados e cobertos por resquícios da vegetação original da região onde se localiza a cidade.

O regime de modernização urbana – melhor seria dizer “de inserção na lógica capitalista de regiões até então relativamente afastadas ou alijadas deste processo” – teve início nas décadas de 1950 e 1960, estendendo-se até os dias atuais em algumas regiões, dependendo de fatores históricos, econômicos e geográficos. Os Planos Diretores, implantados em pouco mais da metade dos 5.572 municípios (dados de 2015) até o momento, têm tido pouca ou nenhuma influência no desenvolvimento urbano das cidades até agora, na maioria dos casos. Para quem alguma vez teve a oportunidade de, ao longo dos anos, acompanhar tal evolução, fica evidente que esta geralmente ocorre sem que se leve em conta a história da cidade e a memória sentimental de seus moradores. Tudo é levado de roldão, em nome de interesses econômicos imediatos, de grupos que controlam econômica e politicamente a cidade. Prédios, casas, árvores centenárias, ruas, praças, esquinas, becos e travessas; tudo é remodelado, destruído, descaracterizado, sem que se atente ao quanto tais paisagens significam para a, muitas vezes, singela história cultural e sentimental daquela cidade e de seus habitantes.                                  

Fontes

tudoGEO

https://www.tudogeo.com.br/2020/08/06/evolucao-dos-municipios-brasileiros-1872-2010/

XXI: O século das cidades no Brasil (BNDES)

https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/3681/2/XXI_o%20s%C3%A9culo%20das%20cidades%20no%20Brasil_11_P.pdf


(Imagens: pinturas de Armand Guillaumin)

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