Algumas ideias sobre o impacto da industrialização e do turismo no desenvolvimento de cidades do litoral de São Paulo

sábado, 7 de outubro de 2023

 

"Os discípulos das crenças monoteístas têm convicção semelhante: liberdade, segundo eles, é obedecer a Deus. O que mais querem os seguidores dessas tradições não é nenhum modo de liberdade de escolha. Pelo contrário, eles anseiam por se libertar da escolha."   -   Jon Gray   -   A alma da marionete


"De acordo com o que dissemos até aqui, infere-se, pois, que a civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca daí resultante entre indivíduos e a produção de mercadorias, que resume esses dois aspectos, atinge seu pleno desenvolvimento e revoluciona toda a sociedade anterior."                                                                                       

Friedrich Engels   -  A origem da família, da propriedade privada e do Estado 


Ainda está para ser escrito um estudo sociológico sobre o desenvolvimento da pequena cidade no Brasil, especialmente daquelas que se expandiram durante o período da industrialização e urbanização avançada do país; as consequências econômicas, sociais e culturais. O aumento do número de municípios no Brasil mostra um crescimento a partir dos anos 1950, notadamente no Sudeste, em regiões relativamente próximas às capitais ou no litoral. ¹

A expansão da rede de estradas de rodagem no país já vinha ocorrendo desde os anos 1940, mas tomou impulso mais forte a partir do governo do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1961). Sob o lema “governar é construir estradas”, foram pavimentados 6,2 mil quilômetros e construídos 14,9 mil quilômetros de estradas; marco inédito na ampliação da infraestrutura rodoviária até aquele período. A iniciativa também visava criar condições que consolidassem a nascente indústria de veículos automotores, o que também contribuiu para o avanço da industrialização do país, já que propiciou o surgimento de milhares de empresas supridoras de peças e serviços, ligadas ao setor automobilístico.

Os investimentos em infraestrutura no governo Kubitschek atuaram como indutores do desenvolvimento, criando centenas de milhares de novos postos de trabalho. Estas condições terão influência na economia do país, fazendo crescer o consumo e aumentando a circulação de mercadorias, o que significa a geração de renda e resultando na melhoria do padrão de vida dos cidadãos.

Em muitas regiões do país, notadamente no Sudeste e no Sul, forma-se uma nova classe média urbana, que passa a comprar mais; alimentos, vestuários, eletrodomésticos, chegando até a adquirir um veículo e, por vezes, um imóvel. Durante as férias e feriados, muitas famílias agora têm um excedente de recursos, suficientes para viagens de turismo; algo que até há pouco era praticamente impossível ao trabalhador comum.

Em acentuado processo de industrialização desde os anos 1930, o estado de São Paulo vinha  investindo na ampliação de sua malha rodoviária desde os anos 1940, e com a expansão da atividade econômica aumentava este ritmo. A Via Anchieta, que liga São Paulo à cidade de Santos e ao restante do litoral, teve suas duas pistas inauguradas entre 1947 e 1953; a Via Raposo Tavares, que liga a capital ao interior do estado, em 1952. A rodovia Régis Bittencourt, ligando São Paulo ao Vale do Ribeira, a Curitiba e ao Sul do país, foi aberta ao tráfego em 1962. Ainda durante os anos 1960 amplia-se o número de estradas conectando a região metropolitana ao interior e ao litoral.

Com mais dinheiro no bolso do trabalhador, o barateamento dos veículos – já que com a produção nacional tornavam-se também mais acessíveis os veículos importados usados, já rodando no país –, e a expansão da rede rodoviária, aumenta o turismo para o litoral paulista. O movimento de veículos e ônibus de turismo cresce nas estradas, que nos feriados e no final do período de férias escolares chegam a ficar congestionadas; o tráfego na rodovia Anchieta, no trecho da Serra do Mar, já era lento no final dos anos 1960.

Com isso, desde o final dos anos 1950 e início dos 1960 há no litoral de São Paulo uma expansão das áreas loteadas e aumento da construção de casas de veraneio e prédios de apartamentos, atraindo mão de obra externa, geralmente não especializada, para as cidades litorâneas. O crescimento populacional faz com que algumas cidades, antes distritos, se tornem municípios autônomos.

É o caso de Praia Grande, distrito de São Vicente e município autônomo desde 1967; das cidades de Mongaguá e Peruíbe, ambas distritos de Itanhaém e municípios autônomos desde 1959; de Bertioga em 1991, anteriormente fazendo parte do município de Santos; e de Ilha Comprida, pertencente às cidades de Iguape e Cananéia, tornando-se município autônomo desde 1992.

O litoral de São Paulo, principalmente o sul, sempre foi relativamente isolado e de pouco contato com os grandes centros, como a cidade de Santos, e menos ainda com a capital, São Paulo. A região não dispunha de estradas e historicamente teve diminuta relevância econômica. De acesso difícil, o litoral Sul começou a sair de seu isolamento com a chegada da ferrovia, em 1914. As cidades históricas de Iguape e Cananéia, no Vale do Ribeira, apesar das diversas atividades econômicas que tiveram ao longo dos séculos – mineração, agricultura, pesca e construção naval – também viviam em relativo isolamento, devido à dificuldade de acesso (não dispunham de ligação ferroviária e rodoviária com outras regiões). O litoral Norte, comparativamente, já teve outro desenvolvimento. Isto por serem cidades de certa importância histórica – caso de São Sebastião, Ilhabela e Ubatuba, que foram portos de alguma importância – e Caraguatatuba, que já no início do século XX tinha atividades agrícolas e artesanais de certa importância. Todavia, o crescimento em todas estas regiões começou efetivamente com a chegada das rodovias, trazendo os turistas com seus automóveis, seguidos pela expansão das redes elétricas e das comunicações.  

O impacto que o turismo provocou nestas cidades foi grande. Com o aumento da população, formada pelos antigos residentes e novos, migrados à procura de trabalho, assim como os turistas, que construíam casas de veraneio, era preciso ampliar, reorganizar e modernizar os serviços públicos. Novos fenômenos, desconhecidos das antigas administrações, quando a cidade era apenas uma “vila”, surgiam com o crescimento: necessidade de coleta de lixo e construção de um aterro, calçamento e manutenção de ruas (agora percorridas por mais veículos), planejamento urbano e fiscalização de novas áreas loteadas, gerenciamento da incipiente distribuição municipal de água e fiscalização da destinação dos efluentes domésticos (a Sabesp só surgiria em 1973 e a instalação ou expansão das redes de água e esgoto só ocorreria ao longo dos anos 1990 e 2000), ampliação ou construção de um posto de saúde, escolas, áreas de convívio e lazer, do cemitério, etc. Foram e ainda são inúmeros os problemas enfrentados por estas cidades ao longo dos últimos 50-60 anos de sua história. A título de exemplo, a população das cidades do litoral Norte – Ubatuba, Caraguatatuba, Ilhabela e São Sebastião – cresceu em média 5% por década, entre 1970 e 2010, passando de um total de 38.897 para 274.691 habitantes, ao longo das quatro décadas. ²

Também é preciso analisar o impacto que este desenvolvimento teve nas antigas populações das “vilas”, que antes viviam em outras relações sociais e econômicas; estáveis, assentadas em vínculos de parentesco, amizade e status dentro daquelas sociedades, praticamente inalteradas ao longo de vidas inteiras. Agora, com o crescimento das cidades e a chegada de novos moradores e frequentadores, estas pessoas se veem defrontadas com outro modo de vida, baseado principalmente nas transações comerciais, no trabalho remunerado, no consumo, na competição, na impessoalidade, na desconfiança e às vezes na desonestidade, característicos do capitalismo periférico brasileiro.

Outro aspecto a ser estudado, é o efeito desta cultura “invasora”, trazida pelo turismo junto com as novas relações econômicas e sociais, e seu impacto nos costumes, na cultura popular (festas, práticas mágico-religiosas, música, danças, lendas e crendices, alimentação, artesanato, etc.) e nos valores da cidade. 

Desconhecemos se em outras partes do litoral brasileiro ou do interior do país houve um desenvolvimento urbano – com suas implicações econômicas, culturais e ambientais – semelhante. Muito provavelmente não é o caso de cidades que surgiram nas últimas décadas ou daquelas que não passaram por relativo isolamento ao longo de sua história. Por essa razão, consideramos o caso das cidades litorâneas, especialmente as do estado de São Paulo – e mais especificamente ainda as do litoral Sul – um assunto a ser estudado mais a fundo por historiadores e sociólogos. Trata-se, em nossa opinião, de uma amostra da história do desenvolvimento do capitalismo e da industrialização em determinada região do país, e de seus efeitos econômicos, sociais e culturais nas sociedades ali localizadas.

¹ Evolução dos municípios brasileiros (1872-2010). Disponível em: https://www.tudogeo.com.br/2020/08/06/evolucao-dos-municipios-brasileiros-1872-2010/. Acesso em 27/09/2023.

² Crescimento urbano e áreas de risco no litoral norte de São Paulo. Disponível em:https://www.scielo.br/j/rbepop/a/PNGyCQW6T8jjkfdHTw5DKys/abstract/?format=html&lang=pt Acesso em 29/09/2023


(Imagens: pinturas de Sol LeWitt)

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