"Os discípulos das crenças monoteístas têm convicção semelhante: liberdade, segundo eles, é obedecer a Deus. O que mais querem os seguidores dessas tradições não é nenhum modo de liberdade de escolha. Pelo contrário, eles anseiam por se libertar da escolha." - Jon Gray - A alma da marionete
"De acordo com o que dissemos até aqui, infere-se, pois, que a civilização é o estágio de desenvolvimento da sociedade em que a divisão do trabalho, a troca daí resultante entre indivíduos e a produção de mercadorias, que resume esses dois aspectos, atinge seu pleno desenvolvimento e revoluciona toda a sociedade anterior."
Friedrich Engels - A origem da família, da propriedade privada e do Estado
Ainda
está para ser escrito um estudo sociológico sobre o desenvolvimento da pequena
cidade no Brasil, especialmente daquelas que se expandiram durante o período da
industrialização e urbanização avançada do país; as consequências econômicas,
sociais e culturais. O aumento do número de municípios no Brasil mostra um
crescimento a partir dos anos 1950, notadamente no Sudeste, em regiões relativamente
próximas às capitais ou no litoral. ¹
A
expansão da rede de estradas de rodagem no país já vinha ocorrendo desde os
anos 1940, mas tomou impulso mais forte a partir do governo do presidente
Juscelino Kubitschek (1956-1961). Sob o lema “governar é construir estradas”, foram
pavimentados 6,2 mil quilômetros e construídos 14,9 mil quilômetros de
estradas; marco inédito na ampliação da infraestrutura rodoviária até aquele
período. A iniciativa também visava criar condições que consolidassem a nascente
indústria de veículos automotores, o que também contribuiu para o avanço da
industrialização do país, já que propiciou o surgimento de milhares de empresas
supridoras de peças e serviços, ligadas ao setor automobilístico.
Os investimentos
em infraestrutura no governo Kubitschek atuaram como indutores do
desenvolvimento, criando centenas de milhares de novos postos de trabalho. Estas
condições terão influência na economia do país, fazendo crescer o
consumo e aumentando a circulação de mercadorias, o que significa a geração de renda
e resultando na melhoria do padrão de vida dos cidadãos.
Em
muitas regiões do país, notadamente no Sudeste e no Sul, forma-se uma nova
classe média urbana, que passa a comprar mais; alimentos, vestuários,
eletrodomésticos, chegando até a adquirir um veículo e, por vezes, um imóvel.
Durante as férias e feriados, muitas famílias agora têm um excedente de recursos,
suficientes para viagens de turismo; algo que até há pouco era praticamente
impossível ao trabalhador comum.
Em
acentuado processo de industrialização desde os anos 1930, o estado de São
Paulo vinha investindo na ampliação de
sua malha rodoviária desde os anos 1940, e com a expansão da atividade
econômica aumentava este ritmo. A Via Anchieta, que liga São Paulo à cidade de
Santos e ao restante do litoral, teve suas duas pistas inauguradas entre 1947 e
1953; a Via Raposo Tavares, que liga a capital ao interior do estado, em 1952.
A rodovia Régis Bittencourt, ligando São Paulo ao Vale do Ribeira, a Curitiba e
ao Sul do país, foi aberta ao tráfego em 1962. Ainda durante os anos 1960
amplia-se o número de estradas conectando a região metropolitana ao interior e
ao litoral.
Com
mais dinheiro no bolso do trabalhador, o barateamento dos veículos – já que com
a produção nacional tornavam-se também mais acessíveis os veículos importados usados,
já rodando no país –, e a expansão da rede rodoviária, aumenta o turismo para o
litoral paulista. O movimento de veículos e ônibus de turismo cresce nas
estradas, que nos feriados e no final do período de férias escolares chegam a
ficar congestionadas; o tráfego na rodovia Anchieta, no trecho da Serra do Mar,
já era lento no final dos anos 1960.
Com
isso, desde o final dos anos 1950 e início dos 1960 há no litoral de São Paulo uma
expansão das áreas loteadas e aumento da construção de casas de veraneio e
prédios de apartamentos, atraindo mão de obra externa, geralmente não
especializada, para as cidades litorâneas. O crescimento populacional faz com
que algumas cidades, antes distritos, se tornem municípios autônomos.
É o
caso de Praia Grande, distrito de São Vicente e município autônomo desde 1967; das
cidades de Mongaguá e Peruíbe, ambas distritos de Itanhaém e municípios
autônomos desde 1959; de Bertioga em 1991, anteriormente fazendo parte do
município de Santos; e de Ilha Comprida, pertencente às cidades de Iguape e
Cananéia, tornando-se município autônomo desde 1992.
O
litoral de São Paulo, principalmente o sul, sempre foi relativamente isolado e
de pouco contato com os grandes centros, como a cidade de Santos, e menos ainda
com a capital, São Paulo. A região não dispunha de estradas e historicamente
teve diminuta relevância econômica. De acesso difícil, o litoral Sul começou a
sair de seu isolamento com a chegada da ferrovia, em 1914. As cidades
históricas de Iguape e Cananéia, no Vale do Ribeira, apesar das diversas
atividades econômicas que tiveram ao longo dos séculos – mineração,
agricultura, pesca e construção naval – também viviam em relativo isolamento,
devido à dificuldade de acesso (não dispunham de ligação ferroviária e rodoviária com outras
regiões). O litoral Norte, comparativamente, já teve outro desenvolvimento.
Isto por serem cidades de certa importância histórica – caso de São Sebastião,
Ilhabela e Ubatuba, que foram portos de alguma importância – e Caraguatatuba,
que já no início do século XX tinha atividades agrícolas e artesanais de certa
importância. Todavia, o crescimento em todas estas regiões começou efetivamente
com a chegada das rodovias, trazendo os turistas com seus automóveis, seguidos
pela expansão das redes elétricas e das comunicações.
O
impacto que o turismo provocou nestas cidades foi grande. Com o aumento da
população, formada pelos antigos residentes e novos, migrados à procura de
trabalho, assim como os turistas, que construíam casas de veraneio, era preciso
ampliar, reorganizar e modernizar os serviços públicos. Novos fenômenos,
desconhecidos das antigas administrações, quando a cidade era apenas uma
“vila”, surgiam com o crescimento: necessidade de coleta de lixo e construção
de um aterro, calçamento e manutenção de ruas (agora percorridas por mais
veículos), planejamento urbano e fiscalização de novas áreas loteadas, gerenciamento
da incipiente distribuição municipal de água e fiscalização da destinação dos
efluentes domésticos (a Sabesp só surgiria em 1973 e a instalação ou expansão
das redes de água e esgoto só ocorreria ao longo dos anos 1990 e 2000),
ampliação ou construção de um posto de saúde, escolas, áreas de convívio e
lazer, do cemitério, etc. Foram e ainda são inúmeros os problemas enfrentados por
estas cidades ao longo dos últimos 50-60 anos de sua história. A título de
exemplo, a população das cidades do litoral Norte – Ubatuba, Caraguatatuba,
Ilhabela e São Sebastião – cresceu em média 5% por década, entre 1970 e 2010,
passando de um total de 38.897 para 274.691 habitantes, ao longo das quatro décadas.
²
Também
é preciso analisar o impacto que este desenvolvimento teve nas antigas populações
das “vilas”, que antes viviam em outras relações sociais e econômicas; estáveis,
assentadas em vínculos de parentesco, amizade e status dentro daquelas sociedades, praticamente inalteradas ao
longo de vidas inteiras. Agora, com o crescimento das cidades e a chegada de
novos moradores e frequentadores, estas pessoas se veem defrontadas com outro
modo de vida, baseado principalmente nas transações comerciais, no trabalho
remunerado, no consumo, na competição, na impessoalidade, na desconfiança e às
vezes na desonestidade, característicos do capitalismo periférico brasileiro.
Outro
aspecto a ser estudado, é o efeito desta cultura “invasora”, trazida pelo
turismo junto com as novas relações econômicas e sociais, e seu impacto nos
costumes, na cultura popular (festas, práticas mágico-religiosas, música,
danças, lendas e crendices, alimentação, artesanato, etc.) e nos valores da
cidade.
Desconhecemos
se em outras partes do litoral brasileiro ou do interior do país houve um
desenvolvimento urbano – com suas implicações econômicas, culturais e
ambientais – semelhante. Muito provavelmente não é o caso de cidades que
surgiram nas últimas décadas ou daquelas que não passaram por relativo
isolamento ao longo de sua história. Por essa razão, consideramos o caso das
cidades litorâneas, especialmente as do estado de São Paulo – e mais
especificamente ainda as do litoral Sul – um assunto a ser estudado mais a
fundo por historiadores e sociólogos. Trata-se, em nossa opinião, de uma
amostra da história do desenvolvimento do capitalismo e da industrialização em
determinada região do país, e de seus efeitos econômicos, sociais e culturais
nas sociedades ali localizadas.
¹
Evolução dos municípios brasileiros (1872-2010). Disponível em: https://www.tudogeo.com.br/2020/08/06/evolucao-dos-municipios-brasileiros-1872-2010/.
Acesso em 27/09/2023.
² Crescimento urbano e áreas de risco no litoral norte de São Paulo. Disponível em:https://www.scielo.br/j/rbepop/a/PNGyCQW6T8jjkfdHTw5DKys/abstract/?format=html&lang=pt Acesso em 29/09/2023
(Imagens: pinturas de Sol LeWitt)
0 comments:
Postar um comentário