“Um
funcionário, civil, religioso ou militar, que serve o Estado para satisfazer
sua ambição ou, como acontece com maior frequência, por um ordenado retirado do
produto do trabalho do povo, ou ainda, o que não é bastante raro, que rouba
também, diretamente o dinheiro do Tesouro, considera-se e é considerado por
seus semelhantes o membro mais útil e mais virtuoso da sociedade.
Um
juiz, um procurador, que sabe que, por sua decisão ou solicitação, centenas e
milhares de infelizes, arrancados a suas famílias, são encarcerados em prisões,
calabouços e enlouquecem, ou se matam com pedaços de vidro, ou se deixam morrer
de fome; que sabe terem eles também, mães, mulheres, filhos desolados pela
separação, desonrados mendicantes inúteis do perdão ou mesmo da melhoria da
sorte de seus pais, filhos, maridos, irmãos; este juiz, este procurador, está
tão inebriado de hipocrisia que ele próprio e seus semelhantes, suas mulheres e
seus amigos estão absolutamente certos que podem ser, apesar de tudo, pessoas
boníssimas e sensíveis. Segundo a metafísica da hipocrisia, eles cumprem uma
missão social muito útil. E estes homens, causa da perda de milhares de outros,
com a crença no bem e com a fé em Deus, vão à igreja com ar radiante, ouvem o
Evangelho, pronunciam discursos humanitários, acariciam seus filhos,
pregam-lhes a moralidade e enternecem-se a propósito de sofrimentos
imaginários.
Todos
estes homens e aqueles que vivem a seu redor, suas mulheres, seus filhos,
professores, cozinheiros, atores nutrem-se do sangue que, deste ou daquele
modo, como um ou outro tipo de sanguessuga, chupam das veias do trabalhador, e
cada um de seus dias de prazer custa milhares de dias de trabalho. Veem as
privações e sofrimentos destes operários, de seus filhos, de suas mulheres, de
seus velhos, de seus doentes; sabem a que punições se expõem aqueles que querem
resistir a esta espoliação organizada, e não só não diminuem seus luxos, não só
não o dissimulam, como ostentam-no indecorosamente diante dos operários
oprimidos, pelos quais são odiados, como se fosse para deliberadamente
excitá-los. E, por outro lado, continuam a acreditar e a fazer acreditar que se
interessam muito pelo bem-estar do povo que continuam pisoteando e, aos
domingos, cobertos de trajes ricos, dirigem-se, em carruagens luxuosas, à casa
de Cristo, erguida pela hipocrisia, e lá escutam os homens, instruídos para
esta mentira, pregarem o amor que todos renegam com toda sua existência. E
aqueles homens desempenham tão bem seus papéis que acabam acreditando, eles
mesmos, na sinceridade de suas sua atitudes.” (Tolstói, págs. 296 e 297).
Leon Tolstói (1828-1910), escritor, ensaísta, filósofo e crítico social russo em O Reino de Deus Está Em Vós


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