Aspectos do imaginário popular na Baixa Idade Média

sábado, 15 de fevereiro de 2014
"O marxismo estacionou: precisamente porque esta filosofia quer transformar o mundo, porque visa "o tornar-se-mundo da filosofia", porque é e quer ser prática, operou-se nela verdadeira cisão que jogou a teoria de um lado e a praxis do outro."  - Jean-Paul Sartre  -  Questão de método

Neste artigo sobre o período medieval, utilizei duas obras bastante importantes, que tratam do imaginário social deste período, abordando principalmente a Baixa Idade Média. Refiro-me à obra o Outono da Idade Média, obra seminal sobre o período, do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945), da qual utilizamos o capítulo A imagem da morte. Outra obra consultada foi História do Riso e do Escárnio, do historiador Georges Minois (1946-), especificamente seus capítulos 6 – Rir e fazer rir na Idade Média; e 7 - O riso e o medo na Baixa Idade Média. No âmbito destas obras, me concentrei nos aspectos do imaginário social; o que causava medo e o que divertia o homem deste período extremamente rico em contradições.
A Idade Média, sempre convêm lembrar, é um período histórico muito longo - vai do século V ao século XV - durante o qual praticamente se estruturou cultural e socialmente aquilo que a partir do século XVIII (e hoje quase fora de moda) se convencionou chamar de civilização ocidental. Mas a Idade Média é muito mais do que um período relativamente obscuro de transição entre o império romano e o mundo moderno surgido no século XVI. A riqueza deste período - seja sob o aspecto social, cultural, religioso - ainda nos reserva grandes surpresas, constantemente estudadas e divulgadas por historiadores como Georges Duby (1919-1996), Jacques Le Goff (1924-), Michel de Certeau (1925-1986), entre outros.
O período sobre o qual trato neste artigo vai de aproximadamente 1300 a 1500. Não farei referência aos aspectos econômicos e políticos. Tampouco farei menção à cultura oficial, já permeada pelo humanismo com todas as suas implicações desde o século XIII, a começar na Itália. O tema deste artigo é o imaginário popular, o que hoje talvez pudesse ser comparado à cultura popular e cultura de massa.
Minois afirma que este período se caracteriza pela crise, afetando todos os aspectos da vida humana e provocando uma verdadeira mutação das mentalidades. Alguns dos aspectos sociais do período são:
- A volta da escassez dos alimentos, já que a população apresentava um crescimento desde o século XII;
- O início da Guerra dos Cem Anos, que com todas as suas implicações foi a mais longa da história da humanidade;
- O aparecimento da Peste Negra, cujo auge foi entre os anos 1346 a 1352, se estendendo até pelos menos 1460, gerou recessão econômica, tensões sociais e revoltas nas cidades e no campo;
- no plano religioso ocorre o Grande Cisma da Igreja (1378-1477), quando existiam concomitantemente dois papados; um com sede em Roma e o outro em Avignon.
Todos estes acontecimentos, agravados pelas mudanças econômicas e políticas, como a gradual erosão do sistema econômico feudal e o desaparecimento dos feudos substituídos pelo poder central, levaram a um clima de insegurança coletiva e individual em toda a Europa. Medo da morte individual iminente; medo do inferno, da vinda do anticristo e do fim do mundo; proliferação de heresias. Sobre estes aspectos escreve Minois:
“... a Igreja dava aos fiéis meios de suportar essas angústias que ela própria suscitava. Procissões, bênçãos, intercessão dos santos, indulgências, novas devoções, sem dúvida, ajudaram as gerações do fim da Idade Média a não cair por completo no desespero e na neurose coletiva." (MINOIS, 2003).
O clima de medo era geral, especialmente o medo da morte e da condenação eterna. Escreve Huizinga:
"Eram três os temas que forneciam a melodia para aquele eterno lamento sobre o final de toda a glória terrena. Primeiro havia o motivo que perguntava: onde estavam todos aqueles que outrora encheram o mundo com sua glória? Depois havia o tema da visão horripilante da decomposição de tudo aquilo que um dia fora beleza humana. Por fim, o motivo da dança macabra, a morte que arrasta consigo as pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade." (HUIZINGA, 2011).
O pavor fazia com que centenas ou milhares de pessoas - muitas delas mendigos, sem-teto, deficientes e leprosos - vagassem pela Europa, esmolando, se autoflagelando, rezando e clamando por perdão por seus supostos pecados; eram os flagelantes. É famosa a cena do filme O Sétimo Selo (1957) de Igmar Bergman, que retrata o final da Idade Média, e em uma de suas cenas mostra um grupo de flagelantes entrando em uma aldeia, aterrorizando seus moradores. Outra cena do mesmo filme mostra um cadáver insepulto de alguém atacado pela peste.
A morte era um dos principais temas na meditação religiosa do fiel. As imagens das danças macabras, representando esqueletos conduzindo pessoas de diversas classes sociais para morte, se tornaram famosas em livros de orações, nas capelas e nas paredes dos cemitérios. São os memento mori (do latim: lembra-te da tua morte); imagens que representadas de diversas formas sempre lembram o tema da finitude humana:
"Em torno da dança macabra agrupam-se algumas ideias afins em relação à morte, igualmente apropriadas para serem usadas como elemento de advertência e terror. O conto dos três mortos e dos três vivos antecede a danse macabre. Já no século XIII, ela surge na literatura francesa: três jovens da nobreza encontram subitamente três mortos hediondos que lhes contam sobre a própria glória terrena e os alertam para o rápido fim que os aguarda." (MINOIS, 2011).
Outro forte tema do imaginário social daquela época foi a segunda vinda do Cristo, que deveria julgar vivos e mortos conforme falavam os Evangelhos, sendo precedido pelo anticristo. A mensagem era repetida nas cidades e nas estradas pelos pregadores e pelos próprios membros da Igreja. Minois escreve que
"O dominicano espanhol Vincent Ferrier deixa atrás de si um rastro de angústia. Em 8 de outubro de 1398, em uma visão, Cristo lhe confiou a missão de pregar o exemplo de Domingos e de Francisco para obter a conversão de multidões ante a vinda iminente do anticristo. Ele vai seguir esta ordem sem relaxar, acrescentando profecias de sua lavra." (ibidem, 2011).
No entanto, segundo Minois, o homem da Baixa Idade Média foi salvo pelo riso. A grande pressão exercida pelo medo sobre o indivíduo e a sociedade também acabou provocando o riso. Nas festas populares as autoridades políticas e religiosas são ridicularizadas, fazem-se paródias engraçadas das missas, abundam as piadas sobre as relíquias de santos, sobre os monges. Orações da liturgia recebiam novas palavras; muitas vezes deboches de baixo nível. As crenças populares são transformadas em fábulas. Boccacio em seu Decameron escreve:
"Eles afirmam que beber muito, usufruir, ir de um lado para outro cantando e se satisfazendo de todas as formas, segundo o seu apetite, e rir e zombar do que pudessem rir era remédio mais certo para tão grande mal." (Bocaccio apud Minois).
Se nada sagrado escapa à zombaria e ao escárnio o mesmo também acontece com o diabo. Nas festas de Carnaval, realizadas nas cidades medievais e atraindo até milhares de visitantes, o “coisa ruim” apanha, é enganado e escorraçado.

"Rir do diabo e do inferno é exorcizar o medo que se tem dele. Ora o diabo está em toda parte, essa época. Zomba-se dele e ele zomba dos homens, em uma bufonaria trágica. Ele é representado, às vezes, mantendo seu fogo nos mistérios, com orelhas de asno, o capuz de guizos, a túnica verde amarela." (Ibidem, 2011).
Os homens, premidos por tantas desgraças reais e imaginárias parecem não ter outra alternativa senão rir. E neste processo fazem troça de tudo: dos pobres coitados, dos poderosos, da loucura, da morte, da miséria, das doenças, do diabo e até de Deus. Em sua amarga revolta, sem conhecer outra possibilidade de protestar contra um universo que o oprime, agride, mata e por fim o joga nas mãos de um deus raivoso, o homem ri. Ri amargamente.
Referências:
Huizinga, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo. Cosac Naify: 2010, 652p.
Minois, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo. Editora UNESP: 2003, 653 p.
(Imagens: fotografias de Bill Perlmutter)

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