Neste artigo sobre o período medieval,
utilizei duas obras bastante importantes, que tratam do imaginário social deste
período, abordando principalmente a Baixa Idade Média. Refiro-me à obra o Outono da Idade Média, obra seminal
sobre o período, do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945), da qual
utilizamos o capítulo A imagem da morte.
Outra obra consultada foi História do
Riso e do Escárnio, do historiador Georges Minois (1946-), especificamente
seus capítulos 6 – Rir e fazer rir na
Idade Média; e 7 - O riso e o medo na
Baixa Idade Média. No âmbito destas obras, me concentrei nos aspectos do
imaginário social; o que causava medo e o que divertia o homem deste período
extremamente rico em contradições.
A Idade Média, sempre convêm lembrar, é um
período histórico muito longo - vai do século V ao século XV - durante o qual
praticamente se estruturou cultural e socialmente aquilo que a partir do século
XVIII (e hoje quase fora de moda) se convencionou chamar de civilização
ocidental. Mas a Idade Média é muito mais do que um período relativamente
obscuro de transição entre o império romano e o mundo moderno surgido no século
XVI. A riqueza deste período - seja sob o aspecto social, cultural, religioso -
ainda nos reserva grandes surpresas, constantemente estudadas e divulgadas por
historiadores como Georges Duby (1919-1996), Jacques Le Goff (1924-), Michel de
Certeau (1925-1986), entre outros.
O período sobre o qual trato neste artigo
vai de aproximadamente 1300 a
1500. Não farei referência aos aspectos econômicos e políticos. Tampouco farei
menção à cultura oficial, já permeada pelo humanismo com todas as suas
implicações desde o século XIII, a começar na Itália. O tema deste artigo é o
imaginário popular, o que hoje talvez pudesse ser comparado à cultura popular e
cultura de massa.
Minois afirma que este período se
caracteriza pela crise, afetando todos os aspectos da vida humana e provocando
uma verdadeira mutação das mentalidades. Alguns dos aspectos sociais do período
são:
- A volta da escassez dos alimentos, já que
a população apresentava um crescimento desde o século XII;
- O início da Guerra dos Cem Anos, que com
todas as suas implicações foi a mais longa da história da humanidade;
- O aparecimento da Peste Negra, cujo auge
foi entre os anos 1346 a
1352, se estendendo até pelos menos 1460, gerou recessão econômica, tensões
sociais e revoltas nas cidades e no campo;
- no plano religioso ocorre o Grande Cisma
da Igreja (1378-1477), quando existiam concomitantemente dois papados; um com
sede em Roma e o outro em Avignon.
Todos estes acontecimentos, agravados pelas
mudanças econômicas e políticas, como a gradual erosão do sistema econômico
feudal e o desaparecimento dos feudos substituídos pelo poder central, levaram
a um clima de insegurança coletiva e individual em toda a Europa. Medo da morte
individual iminente; medo do inferno, da vinda do anticristo e do fim do mundo;
proliferação de heresias. Sobre estes aspectos escreve Minois:
“...
a Igreja dava aos fiéis meios de suportar essas angústias que ela própria
suscitava. Procissões, bênçãos, intercessão dos santos, indulgências, novas
devoções, sem dúvida, ajudaram as gerações do fim da Idade Média a não cair por
completo no desespero e na neurose coletiva." (MINOIS, 2003).
O clima de medo era geral, especialmente o
medo da morte e da condenação eterna. Escreve Huizinga:
"Eram
três os temas que forneciam a melodia para aquele eterno lamento sobre o final
de toda a glória terrena. Primeiro havia o motivo que perguntava: onde estavam
todos aqueles que outrora encheram o mundo com sua glória? Depois havia o tema
da visão horripilante da decomposição de tudo aquilo que um dia fora beleza
humana. Por fim, o motivo da dança macabra, a morte que arrasta consigo as
pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade." (HUIZINGA, 2011).
O pavor fazia com que centenas ou milhares
de pessoas - muitas delas mendigos, sem-teto, deficientes e leprosos - vagassem
pela Europa, esmolando, se autoflagelando, rezando e clamando por perdão por
seus supostos pecados; eram os flagelantes. É famosa a cena do filme O Sétimo Selo (1957) de Igmar Bergman,
que retrata o final da Idade Média, e em uma de suas cenas mostra um grupo de
flagelantes entrando em uma aldeia, aterrorizando seus moradores. Outra cena do
mesmo filme mostra um cadáver insepulto de alguém atacado pela peste.
A morte era um dos principais temas na
meditação religiosa do fiel. As imagens das danças macabras, representando
esqueletos conduzindo pessoas de diversas classes sociais para morte, se
tornaram famosas em livros de orações, nas capelas e nas paredes dos
cemitérios. São os memento mori (do
latim: lembra-te da tua morte);
imagens que representadas de diversas formas sempre lembram o tema da finitude
humana:
"Em
torno da dança macabra agrupam-se algumas ideias afins em relação à morte,
igualmente apropriadas para serem usadas como elemento de advertência e terror.
O conto dos três mortos e dos três vivos antecede a danse macabre. Já no século
XIII, ela surge na literatura francesa: três jovens da nobreza encontram
subitamente três mortos hediondos que lhes contam sobre a própria glória
terrena e os alertam para o rápido fim que os aguarda." (MINOIS,
2011).
Outro forte tema do imaginário social
daquela época foi a segunda vinda do Cristo, que deveria julgar vivos e mortos
conforme falavam os Evangelhos, sendo precedido pelo anticristo. A mensagem era
repetida nas cidades e nas estradas pelos pregadores e pelos próprios membros
da Igreja. Minois escreve que
"O
dominicano espanhol Vincent Ferrier deixa atrás de si um rastro de angústia. Em
8 de outubro de 1398, em uma visão, Cristo lhe confiou a missão de pregar o
exemplo de Domingos e de Francisco para obter a conversão de multidões ante a
vinda iminente do anticristo. Ele vai seguir esta ordem sem relaxar,
acrescentando profecias de sua lavra." (ibidem, 2011).
No entanto, segundo Minois, o homem da
Baixa Idade Média foi salvo pelo riso. A grande pressão exercida pelo medo
sobre o indivíduo e a sociedade também acabou provocando o riso. Nas festas
populares as autoridades políticas e religiosas são ridicularizadas, fazem-se
paródias engraçadas das missas, abundam as piadas sobre as relíquias de santos,
sobre os monges. Orações da liturgia recebiam novas palavras; muitas vezes
deboches de baixo nível. As crenças populares são transformadas em fábulas.
Boccacio em seu Decameron escreve:
"Eles
afirmam que beber muito, usufruir, ir de um lado para outro cantando e se
satisfazendo de todas as formas, segundo o seu apetite, e rir e zombar do que
pudessem rir era remédio mais certo para tão grande mal." (Bocaccio apud Minois).
Se nada sagrado escapa à zombaria e ao
escárnio o mesmo também acontece com o diabo. Nas festas de Carnaval,
realizadas nas cidades medievais e atraindo até milhares de visitantes, o
“coisa ruim” apanha, é enganado e escorraçado.
"Rir
do diabo e do inferno é exorcizar o medo que se tem dele. Ora o diabo está em
toda parte, essa época. Zomba-se dele e ele zomba dos homens, em uma bufonaria
trágica. Ele é representado, às vezes, mantendo seu fogo nos mistérios, com
orelhas de asno, o capuz de guizos, a túnica verde amarela." (Ibidem, 2011).
Os homens, premidos por tantas desgraças
reais e imaginárias parecem não ter outra alternativa senão rir. E neste
processo fazem troça de tudo: dos pobres coitados, dos poderosos, da loucura,
da morte, da miséria, das doenças, do diabo e até de Deus. Em sua amarga
revolta, sem conhecer outra possibilidade de protestar contra um universo que o
oprime, agride, mata e por fim o joga nas mãos de um deus raivoso, o homem ri.
Ri amargamente.
Referências:
Huizinga, Johan. O outono da Idade Média.
São Paulo. Cosac Naify: 2010, 652p.
Minois, Georges. História do Riso e do
Escárnio. São Paulo. Editora UNESP: 2003, 653 p.
(Imagens: fotografias de Bill Perlmutter)
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