Para
sociólogo italiano, a luta contra a barbárie depende de um ambiente em que a
arte e a cultura sirvam de ‘líquido amniótico’ para ideais de liberdade,
tolerância e solidariedade
Publicado no jornal O Estado de São
Paulo de 16 de fevereiro de 2014
Dois
peixes jovens encontram-se casualmente com um peixe mais velho que nada na
direção contrária. Este cumprimenta-os com a cabeça e lhes diz: "Bom dia,
rapazes, como está a água?". Os dois peixes jovens nadam mais um pouco;
depois um olha para o outro e pergunta: "Que diabos é água?". Nuccio
Ordine Diamante, 55 anos, professor de literatura italiana da Universidade da
Calábria e colaborador do jornal Corriere della Sera, costuma abrir suas
aulas a cada ano contando essa historinha do escritor norte-americano David
Foster Wallace. A intenção é ilustrar o papel e a função da cultura. Com os
alunos meio "boiando", Ordine explica a parábola: "Como acontece
com os dois peixes jovens, não nos damos conta de que é na água que vivemos
cada minuto de nossa existência. Não temos consciência de que a literatura e os
saberes humanísticos, a cultura e o ensino constituem o líquido amniótico ideal
no qual as ideias de democracia, liberdade, justiça, laicidade, igualdade,
direito à crítica, tolerância e solidariedade podem experimentar um vigoroso
desenvolvimento".
Mas
e se a água está irremediavelmente suja? Uma água contaminada pela corrupção,
por uma sociedade em busca incessante do lucro? Uma água que transforma
estudantes em "clientes", induzidos por pais a carreiras que só
contemplam maior chance de enriquecer? Uma água virulenta, que espalha
violência gratuita? Uma água que sepulta a arte e a cultura de invenção, em
troca da "beleza fácil" e dos critérios comerciais na vida artística
e cultural, na expressão de Ordine?
Contra
essa água emporcalhada, o professor oferece um livrinho-bomba - um manifesto
virulento e cheio de indignação intelectual a favor da arte e da cultura
desinteressada a cargo de Platão, Aristóteles, Ovídio, Dante, Montaigne,
Borges, Shakespeare, Boccaccio, Leopardi e Calvino. Um timaço convocado por
Ordine em sua frente de combate. Título? A Utilidade do Inútil. Menos de 200
páginas em formato de livro de bolso editadas pela Bompiani de Milão. No final
de 2013, a
Acantilado de Barcelona lançou a edição espanhola. O professor Luiz Carlos
Bombassaro, da UFRGS, universidade que recebeu Ordine em 2012, já traduziu o
livro, a ser lançado no Brasil ainda em 2014. Na Itália, foram nove edições e
46 mil exemplares vendidos em quatro meses; na Espanha, cinco edições e 17 mil
exemplares em três meses; e na França, 10 mil em quatro edições. Além do
Brasil, o livro deve sair este ano na Grécia, Alemanha, Romênia e Coreia do
Sul; em 2015, na Bulgária e na China. A melhor frase na imprensa europeia sobre
o livro já está eleita: é de Jordí Llovet em El Pais: "Uma porrada em toda
a classe política".
A
mensagem de Ordine é bastante direta: não é verdade, nem em tempos de crise
como se vive na Europa, que é útil apenas o que produz cifras. Num jogo de
palavras, ele brinca com a utilidade do inútil (conhecimento) e a inutilidade
do útil (lucro). Especialista em Giordano Bruno e no Renascimento e com um
conhecimento enciclopédico fluindo numa escrita saborosa e clara, Ordine
constrói um caleidoscópio de defesa da arte e da cultura - segmentos
massacrados e hostilizados especialmente quando praticam a criação e a pesquisa
baseadas tão somente no saudável gosto de perseguir o conhecimento.
"No
universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais
que uma poesia, uma chave-inglesa mais que um quadro, porque é fácil entender a
eficiência de uma ferramenta, mas vem se tornando cada vez mais difícil
entender para que servem a música, a literatura ou a arte", denuncia
Ordine. Existem saberes que são fins em si mesmos e que - por sua natureza gratuita
e desinteressada, alheia de qualquer vínculo prático e comercial - podem
exercer papel fundamental no cultivo do espírito e desenvolvimento civil e
cultural.
Mesmo
se em alguns momentos da história o saber não soube ou pôde eliminar de vez a
barbárie, ele diz não haver nenhuma outra escolha. "Devemos continuar a
crer que a cultura e uma educação livre são os únicos meios para tornar a
humanidade mais humana." Pequenas revoluções individuais, essa é a receita
de Nuccio Ordine para mudar o estado das coisas. Abaixo, sua entrevista
concedida ao Aliás.
No Brasil temos muitos ‘berlusconis’ e
a classe política sofre o mesmo descrédito que na Itália. As verbas do governo
chegam ralas a sua destinação porque são saqueadas no trajeto pela burocracia e
pelos políticos. Que atitudes podem ser tomadas para começarmos a mudar esse
estado de coisas? Que nos ensinam os clássicos em termos de resistência contra
tudo isso?
O
problema da corrupção acompanha todas as épocas. Mas hoje parece que ganhou
mais capilaridade. A ditadura do lucro e do utilitarismo infectou todos os
aspectos da nossa vida, chegando a contaminar esferas nas quais o dinheiro não
deveria ter peso, como a educação. Transformar escolas e universidades em
empresas que devem produzir unicamente diplomados para o mundo do trabalho é
destruir o valor universal do ensino. Os estudantes adquirem créditos e pagam
débitos com a esperança de conquistar uma profissão que possa dar a eles o
máximo de riqueza. A escola e a universidade, ao contrário, devem formar os heréticos
capazes de rejeitar o lugar-comum, de repelir a ideologia dominante de que a
dignidade pode ser medida com base no dinheiro que possuímos ou com base no
poder que possamos gerenciar. A felicidade, como nos recorda Montaigne, não
consiste em possuir, mas em saber viver. No meu livro, quis chamar a atenção
sobre os saberes que hoje são considerados inúteis porque não produzem lucro.
Sem a literatura, a filosofia, a música e a arte, nós construiremos uma
humanidade desumana, violenta, formada por indivíduos capazes de pensar
exclusivamente em interesses egoístas.
Como devolver aos professores o sentido
de missão que deveria ser a razão de seu trabalho?
Os
professores viraram burocratas em busca de recursos para sobreviver.
Perseguidos pela necessidade de encontrar recursos econômicos e governados por
uma métrica burocrática que determina a pauta das reuniões de departamento, dos
cursos de graduação e dos mais diversos conselhos (de administração, de
pós-graduação, de cursos de especialização), vivem correndo de uma instituição
a outra esquecendo que a tarefa mais importante de um docente consiste em
estudar, preparar as aulas e acompanhar os alunos. Ensinar não é uma profissão,
mas uma vocação que não prescinde de compromisso civil. Também na área da ciência
financia-se cada vez menos a pesquisa de base e cada vez mais se pede que
universidades e laboratórios encontrem financiamentos privados. Somente a
liberdade da pesquisa (da pesquisa considerada "inútil") deu vida às
grandes revoluções da humanidade. Sem os estudos teóricos de Maxwell e Hertz,
Marconi nunca teria inventado o rádio.
As artes e a cultura são sempre as
primeiras a sofrer cortes nas políticas públicas em situação de crise. Mas hoje
a situação é pior: até os profissionais da arte e da cultura estão contaminados
com a busca obsessiva pelo lucro. Mede-se e atribui-se valor à arte pelo volume
de público que consegue atrair, mas quantidade nunca quis dizer qualidade. Isso
sempre aconteceu historicamente?
Com
o agravamento da crise econômica, os cortes dos governos atingem
inexoravelmente mais os saberes considerados inúteis e as instituições que não
produzem lucro: escolas e universidades, museus e arquivos históricos,
escavações arqueológicas e bibliotecas, teatro e música. Muitas vezes, a sobrevivência
desses saberes está subordinada à lógica da "quantidade", como se o
sucesso imediato e o dinheiro derivado desse sucesso fossem os únicos
parâmetros de avaliação. Mas, frequentemente, como lembra Tocqueville, o
sucesso é determinado pela "beleza fácil" que não exige muito esforço
nem excessiva perda de tempo. E dedicar tempo e realizar atividades que não
produzem dinheiro parece ser um luxo que não podemos nos permitir. Se Tocqueville
lembra que descuidar da instrução, da beleza e da cultura significa jogar a
humanidade no abismo da ignorância e da barbárie, Víctor Hugo, num atualíssimo
discurso proferido na Assembleia Constituinte francesa em 1848, demonstra que
mesmo em tempos de crise é preciso dobrar os investimentos para a educação das
novas gerações e para a promoção da cultura em geral. Hugo sabia bem que abrir
uma escola significava fechar uma prisão.
Como transformar a indignação em uma
luta coerente contra a ditadura do consumo?
Meu
livro é uma reflexão sobre a utilidade do inútil, mas é também uma análise
crítica da inutilidade do útil. Quantas vezes são vendidos produtos e objetos
como sendo realmente indispensáveis? As invenções mais revolucionárias da
técnica (basta pensar no iPhone ou na internet) também podem se transformar
numa forma de escravidão. Os estudantes que não conseguem desligar o celular
nas aulas (ou as pessoas que não o desligam num concerto, no cinema, no teatro,
numa conferência) comportam-se como drogados. O dispositivo tecnológico é como
um fármaco: pode curar e pode matar. Tudo depende da dose. Mas há mais. Numa
sociedade em que o aparecer é mais importante que o ser, parece normal que o
automóvel de luxo ou o relógio de grife se tornem expressão do nosso modo de
ser. Basta ler O Mercador de Veneza, de Shakespeare, para compreender como a exterioridade
induz ao erro. No reino de Belmonte, a bela Porzia se entregará como esposa ao
que abre o cofre de chumbo, e não ao que abre o de ouro ou prata. Trata-se de
um topos que, desde O Banquete de Platão, atravessará todo o Renascimento: as aparências
enganam.
A palavra utopia tem sido malvista nos
últimos tempos. Mas não é justamente o anseio pelas utopias que nos faz viver
de modo mais intenso e impulsionou o senhor a escrever esse livro?
Reduzir
o valor da vida ao dinheiro mata toda possibilidade de idealizar um mundo
melhor. Somente o saber pode fazer frente ao domínio do dinheiro, pelo menos
por três razões. A primeira: com o dinheiro pode-se comprar tudo (dos juízes
aos parlamentares, do poder ao sucesso), menos o conhecimento. Sócrates lembra
a Agatão que o saber não pode ser transferido mecanicamente de uma pessoa a
outra. O conhecimento não se adquire, mas se conquista com grande empenho
interior. A segunda razão diz respeito à total reversão da lógica do mercado.
Em qualquer troca econômica há sempre uma perda e um ganho. Se compro um
relógio, por exemplo, "perco" o dinheiro e fico com o relógio; e quem
me vende o relógio "perde" o relógio e recebe o dinheiro. Mas, no
âmbito do conhecimento, um professor pode ensinar um teorema sem perdê-lo. No
círculo virtuoso do ensinar, enriquece quem recebe (o estudante), enriquece
quem dá (quantas vezes o professor aprende com seus estudantes?). Trata-se de
um pequeno milagre. Um milagre - e essa é a terceira razão - que o dramaturgo irlandês
George Bernard Shaw sintetiza num exemplo: se dois indivíduos têm uma maçã cada
um e fazem uma troca, ao voltar para casa cada um deles terá uma maçã. Mas, se
esses indivíduos possuem cada um uma ideia e a trocam, ao voltarem para casa
cada um deles terá duas ideias. Mesmo se em alguns momentos da história o saber
não soube ou pôde eliminar por completo a barbárie, não temos outra escolha.
Devemos continuar a crer que a cultura e uma educação livre são os únicos meios
para tornar a humanidade mais humana.
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