A peneira

quarta-feira, 20 de maio de 2015
"A verdade não deve, porém, ser buscada na boa fortuna de uma época, que é inconstante, mas à luz da natureza e da experiência, que é eterna."  -  Francis Bacon  -  Novum Organum

Peneirar é separar objetos de tamanhos diferentes. Se a peneira não tivesse a trama ou os furos de determinado tamanho, poderiam acontecer duas coisas: ou nada passaria pelo fundo, assim como em uma panela; ou tudo que fosse menor que o arco passaria pelo fundo (já que não haveria peneira, só um buraco redondo). A peneira tem esse nome porque separa coisas de diversos tamanhos.
Tanto o que não passa pela peneira (por ser muito grande) como o que passa, pode ter alguma utilidade. Os garimpeiros à procura de pedras preciosas na areia, aproveitam só o que não passa pela peneira (as pedras que talvez possam ter algum valor). A areia é jogada fora. No caso da construção, na preparação da argamassa, já é o contrário: só a areia peneirada tem valor. 
Nos seres vivos as sensações podem ser consideradas peneiras. Os sentidos - a visão, a audição, o tato, o paladar e o olfato - funcionam como "peneiras" em nosso contato com o mundo. O que não percebemos, de certa forma não existe para nós e não exerce qualquer influência sobre nossas emoções e pensamentos. Existem radiações, como o infravermelho, que não conseguimos perceber - ao contrário das cobras e das abelhas. Há tipos de sons que são ouvidos pelos cães e os ratos, mas que a audição humana não consegue captar. O mesmo vale para cheiros e gostos. Não é por outra razão que os enólogos (aqueles que se especializam em provar o odor e o sabor de vinhos) precisam de anos de treinamento para aprimorarem seu olfato e paladar. 
São os sentidos que caracterizam a forma como um animal - incluindo o homem - interage com o mundo. Por isso não há uma maneira única de perceber e reagir aos estímulos do ambiente. A forma como uma coruja ou uma onça se comportam à noite na floresta, na ausência de luz, é diferente da das galinhas ou dos jabutis. E é este jeito de perceber o mundo através dos sentidos, que vai determinar a maneira e o lugar onde cada espécie vive. Os sentidos de cada animal funcionam como uma peneira.
Mas se esta peneira não funcionar de maneira correta, separando o que é importante daquilo que não é, o animal não será mais capaz de interpretar corretamente os estímulos do meio ambiente, e se tornará presa de seus predadores. Assim ocorre que certos herbicidas, usados para combater ervas daninhas, afetam o sistema nervoso das abelhas, fazendo com que estas fiquem desorientadas ao voarem e assim reduzam a produção de mel. Algo afetou a "peneira" (a percepção) da abelha e esta já não consegue mais interpretar corretamente seu ambiente.
A única espécie capaz de se adaptar a qualquer ambiente é o homem. Com seu raciocínio, adquiriu a capacidade de superar as limitações impostas por sua "peneira", ou seja, seus sentidos e sentimentos. Através de instrumentos científicos, o homem aumentou em muito sua capacidade de perceber o mundo. Vemos galáxias distantes com poderosos telescópios, escutamos infra e ultrassons, temos lentes que nos possibilitam enxergar no escuro, conseguimos captar e transmitir ondas invisíveis de rádio e TV, fabricamos sensores para cheiros quase imperceptíveis. Desenvolvemos "peneiras" para quase tudo.

O homem também tem um outro tipo de peneira: seu conhecimento, suas crenças e seus preconceitos. Quando temos contato com o mundo e as pessoas, "peneiramos" nossas percepções, impressões e sentimentos, baseados naquilo que sabemos, acreditamos e pré-concebemos. E é através destas "peneiras" que julgamos e agimos na vida, muitas vezes não conseguindo entender situações e pessoas.
O grande desafio do homem é aprender a "peneirar", ou seja, enxergar, julgar e agir de modo correto, sabendo separar "o joio do trigo". Para este aprendizado, no entanto, não existe uma fórmula pronta; é preciso paciência. É como escreveu mestre Salun: "Reparem na maré com as pedras e as areias; são atritos constantes e necessários para que cada um tenha o seu lugar. O oceano também tem a sua peneira e as areias um dia também foram seixos e pedras; os atritos fizeram cada um cumprir sua função."
(Imagens: mosaicos romanos)

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