Dualismo e sentido da história (Parte I)

sábado, 26 de maio de 2018
"Existe uma lógica na História? Haverá, além dos feitos avulsos, que são casuais e imprevisíveis, uma estrutura, por assim dizer, metafísica, da Humanidade histórica, e que permaneça independente das conhecidas manifestas formações político-espirituais, que se veem na superfície?"   -   Oswald Spengler   -   A Decadência do Ocidente


O filósofo Heráclito de Éfeso (535-475 AEC) dizia que tudo muda, uma coisa se transforma em outra e que nunca conseguimos entrar no mesmo rio; as águas não são as mesmas e nós também não. Seu colega quase contemporâneo da cidade de Eléia, no sul da Itália, Parmênides (530-460 AEC) dizia que só existia o Uno, que a mudança era aparente. Mais tarde, Platão (428- 348 AEC) influenciado por ambos criou o mundo dos Ideais. Este é eterno e nunca muda, contraposto ao mundo onde vivemos, que Platão considerava uma cópia sempre efêmera e mutável do mundo eterno e imutável dos Ideais.

O mundo ideal de Platão tinha influência dos cultos órficos e foi incorporado conceptualmente pelo nascente cristianismo. Esta nascente religião já continha uma carga considerável de dualismo, que herdou em sua maior parte dos conceitos dualistas da religião judaica. O judaísmo trazia em sei bojo conceitos religiosos dualistas diversos: de que haveria dois princípios, um bom e outro mau, tentando dominar o mundo; a ideia de que ocorreria um Final dos Tempos, quando o princípio Bom e o Mal travariam uma batalha definitiva pelo domínio do universo; a crença de que os mortos ressuscitariam para serem julgados e separados em salvos e condenados. Todas são ideias que o judaísmo incorporou da religião persa, o Zoroastrismo. 

No judaísmo as ideias religiosas originadas no zoroastrismo e assimiladas depois do exílio babilônico (século VI AEC) concretizaram-se em concepções como a implantação do um Reino de Deus, em contraposição ao mundo real da época, no qual os judeus eram dominados por uma cultura grega e por uma política romana. A instituição do Reino de Javé significaria a destruição do império romano e o domínio de um reino judeu comandado por Javé. O judaísmo já havia sido bastante influenciado por correntes apocalípticas - que inclusive influenciaram o nascente cristianismo, como mostra o livro cristão do Apocalipse. Essas ideias eram correntes entre grupos judeus do século II AEC até o século I EC, como os fariseus, os essênios e os zelotes.

O cristianismo em sua fase de estruturação, entre os séculos II e V, absorveu conceitos platônicos através da filosofia de Plotino (204-270 EC), corrente nas principais cidades do império romano no início da era cristã. Líderes dos primeiros séculos da religião, como Orígenes e Agostinho ajudaram a construir conceitos e dogmas do cristianismo fortemente influenciados pela filosofia de Plotino. Assim, o dualismo herdado pelo cristianismo do zoroastrismo através do judaísmo, passou a permear a doutrina cristã, com apoio da doutrina de Platão, transmitida por Plotino.

Foi, provavelmente, sob influência do zoroastrismo persa que o judaísmo passou a enxergar a história - mais especificamente a história do povo judeu - como tendo um objetivo; como um processo em direção à implantação do Reino de Deus na terra, junto com a vinda de um Messias. Interessante notar, que o nascente cristianismo interpretou este fato de maneira diferente. Isto porque ainda na segunda metade do século I EC, passou a firmar-se a ideia de que Jesus de Nazaré era o Messias prometido. Assim, de certo modo, para a primeira e segunda geração de cristãos restava apenas esperar pelo "Fim do Mundo", pela Parúsia; quando todos os mortos ressuscitariam para um julgamento e seria implantado o reino de Deus, com a vitória de Jesus Cristo sobre o Demônio (este também com uma longa gênese no judaísmo/cristianismo). Muitos cristãos de primeira hora, como Paulo, estavam certos de que ainda em vida veriam a chegada do Fim do Mundo.

Mas, a vinda do Reino demorava em chegar, apesar do que diziam os escritos apocalípticos - e havia vários Apocalipses circulando na região do Mediterrâneo no início da era cristã entre as comunidades de crentes. Assim, aos poucos, as igrejas locais se agruparam em torno de uma igreja única, com crenças (quase) comuns, com seus ritos e sua doutrina.

Desta forma, a nascente igreja cristã incorporou do judaísmo as noções escatológicas e dos fins últimos do homem e da filosofia grega o platonismo dualista. A ideia grega de uma história universal e humana cíclica não foi incorporada pelos pensadores cristãos, já que esta não coadunava com a visão herdada do judaísmo. 

Desde o início do cristianismo a história humana tinha um sentido que girava em torno da mensagem de Jesus - ou daquilo que as comunidades cristãs primitivas acreditavam que fosse sua pregação. O sentido da história da humanidade dizia respeito especificamente a Cristo e seu reino e a atitude que cada ser humano teria em relação a sua mensagem. A ideia filosófica de que a história tivesse um sentido, uma direção, um desenvolvimento, foi defendida principalmente por Santo Agostinho em sua obra A Cidade de Deus. Neste trabalho o patriarca da Igreja interpreta a história como sendo basicamente uma luta do Bem contra o Mal. Em suas ações, cidadãos, reis e estados se perfilam de um lado ou de outro nesta titânica luta. No final Deus, que é o Bem Supremo, vencerá o Demônio, quando então se dará fim à história como a conhecemos.
(CONTINUA)

(Imagens: pinturas de Paul Nash)

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