O fenômeno das fake news

sábado, 25 de agosto de 2018
"A razão não é um elemento comum a Deus, ao mundo e ao homem, mas sim, uma propriedade antropológica."   -   Nicola Panichi   -   Montaigne, A consciência do Renascimento

O debate sobre as fake news, notícias falsas, tomou conta dos principais órgãos de comunicação no Brasil. O fenômeno, pelo menos em sua versão mais recente, teve início nos Estado Unidos, há cerca de dois anos, por ocasião das eleições presidenciais daquele país. 

A agressiva disputa pelo voto dos eleitores na reta final das eleições, trouxe à discussão o uso das novas mídias sociais. As assessorias do republicano Donald Trump e da democrata Hillary Clinton travaram um forte batalha através das mídias sociais; correio eletrônico, Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp, entre as principais. As acusações de lado a lado foram várias, mas as que tiveram mais divulgação e impacto foram duas. Por seu lado, os republicanos acusaram a candidata Hillary Clinton de ter usado sua conta particular no e-mail, para tratar de assuntos de governo enquanto era Secretária de Estado do governo Barak Obama – o que é considerado um crime, por colocar em risco segredos de Estado. Os democratas, entre outras reclamações, incriminam Trump e sua equipe de terem obtido ajuda do governo russo, que através de contas falsas no Facebook operadas por hackers supostamente influenciou o voto de centenas de milhares de cidadãos americanos. 

O cerne da discussão sobre as fake news é que as redes sociais, que começaram como instrumento de mobilização durante a campanha que culminou na reeleição de Barak Obama em 2012, passaram a ser utilizadas como instrumento de propaganda e de fake news nas campanhas das eleições presidenciais de 2016. A página da Wikipedia que trata sobre fake news informa que as notícias falsas não exerceram influência sobre eleições anteriores a 2016. Todavia, admite que notícias falsas foram usadas como armas na batalha eleitoral entre Trump e Hillary Clinton, e que o fenômeno passou a exercer influência ainda maior sobre o processo político americano no período posterior à eleição.

A atuação das redes sociais – e das falsas notícias – não terminou ao findarem as eleições. Logo no início do mandato, o novo presidente eleito acusou a imprensa de estar publicando notícias falsas sobre seu governo. Segundo o jornal The Thelegraph, “fake news” foi o termo favorito do presidente Donald Trump em 2017 e “fake” foi eleita a “palavra do ano”, ainda segundo o diário britânico. Fato é que por algumas vezes parte da mídia americana efetivamente noticiou acontecimentos que não foram devidamente investigados e que depois foram constatados como inverídicos. 

O pior, porém, é a enxurrada de notícias falsas e claramente fantasiosas que passaram a ser divulgadas pelas mídias sociais. Independentemente dos partidos políticos, grupos interessados em fazer humor, divulgar boatos e semear a confusão, continuaram a divulgar todo tipo de notícia enganosa. O site Information is Beautiful (https://informationisbeautiful.net/visualizations/biggest-fake-news-of-2017/), por exemplo, fornece uma extensa lista de fake news que circularam na mídia social de todo o mundo, especialmente na americana, em 2017. Nesta lista aparecem manchetes como: “Papa Francisco: Deus me instruiu a mudar os dez mandamentos!”; “Islândia paga a mulheres 5 mil dólares por mês para casarem com imigrantes”; “Palestinos reconhecem Texas como parte do México”; “Obama e Michele estão se divorciando”; “Imigrantes ilegais começaram incêndios na Califórnia”, entre outros.

Querendo chamar a atenção para importantes notícias posteriormente comprovadas como falsas, o presidente Donald Trump lançou em janeiro de 2018 o seu próprio “Prêmio de Fake News”. Entre os primeiros quatro colocados estavam mídias do porte do jornal The New York Times (noticiou erroneamente que com Trump a economia não se recuperaria); ABC News (informou incorretamente que Trump havia feito contato com os russos antes das eleições); e CNN (que falsamente informou que Trump e seu filho haviam recebido cópias de documentos da WikiLeaks). Outros veículos como o Washington Post, Newsweek, Vanity Fair e Time também foram “premiados” pelo presidente. 

A situação das notícias falsas já avançou de tal maneira, que a Wikipedia colocou no ar uma página contendo uma extensa (mas não definitiva, como informa o site) lista de sites de informações falsas, com a seguinte observação: “Esta é uma lista de sites de fake news. Estes sítios publicam intencionalmente, mas não unicamente, farsas e desinformação, com outros objetivos que não a sátira”. Em 8 de dezembro de 2016, após as eleições, a senadora Hillary Clinton fez uma palestra, na qual mencionou “a epidemia de notícias falsas maliciosas e propaganda falsa que inundaram a mídia social durante o último ano”.

O fenômeno das notícias falsas não é recente; a história está cheia de exemplos. Otávio (posteriormente chamado Augusto), que junto com Marco Antônio e Lépido formou o Segundo Triunvirato de Roma, depois do assassinato de Júlio César, fez uso de uma campanha de desinformação para vencer Marco Antônio na batalha de Áccio, a última da República romana. O historiador Robert Darnton, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 2017, relatou diversos casos de notícias falsas ao longo da história. “Procópio foi um historiador do século VI, famoso por escrever a história do império de Justiniano. Mas ele também escreveu um texto secreto, chamado ‘Anekdota’, e ali ele espalhou fake news, arruinando completamente a reputação do imperador Justiniano e de outros.”, relata Darnton. Em Londres no século XVII, ainda segundo o historiador, existiam os chamados “homens-parágrafo”, que recolhiam fofocas redigidas resumidamente em um parágrafo sobre pequenos papeis, depois vendidos às editoras. Estas os imprimiam na forma de reportagens, muitas vezes difamatórias. 

Em junho de 2018 o jornal El País publicou interessante matéria intitulada “A longa história das notícias falsas”, na qual o jornalista Guillermo Altares descreve como as notícias falsas desempenharam importante papel em diversas fases da história. Altares cita como exemplo três guerras nas quais os Estados Unidos se envolveram com base em notícias falsas: a Guerra de Cuba (1898), com a manipulação da imprensa; a guerra do Vietnã (1955-1975), com o incidente do Golfo de Tonkin; e a invasão do Iraque em 2003, baseada nas inexistentes armas atômicas de Saddam Hussein. 

As notícias falsas não surgem do nada e sem motivos; sempre são criadas por interesses de pessoas, grupos sociais e econômicos, com intuito de tirar vantagens de situações. Expulsar judeus e se apoderar das riquezas dos templários na Idade Média, tomar as terras dos fazendeiros na União Soviética sob regime stalinista, ocupar as áreas indígenas e explorar as riquezas minerais em nome do progresso do país... Sobre o uso de notícias falsas para justificar certas atitudes, escreve o historiador Marc Bloch (1886-1944): “Um erro só se propaga e amplifica, só ganha vida com uma condição: encontrar um caldo de cultivo favorável à sociedade onde se expande. Nele, de forma inconsciente, os homens expressam seus preconceitos, seus ódios, seus temores, todas as suas emoções.”

O movimento de denúncia das notícias falsas é oportuno, dado o início do período das campanhas eleitorais no Brasil. Assim como ocorreu nos Estados Unidos, é certo que partidários dos diversos postulantes utilizem as mídias sociais para fazer propaganda das qualidades de seus candidatos. Alguns provavelmente chegarão ao ponto de exagerar os atributos de seu político e difamar os demais concorrentes. Outro aspecto a considerar é que nossa imprensa não está isenta de cometer, premeditadamente ou não, os mesmos erros de certos segmentos da mídia dos Estados Unidos, divulgando informações que não são verdadeiras. Os tempos mudam, mas a maneira de conquistar o poder continua o mesmo, com outros instrumentos. Em tempos de mídias sociais e imprensa em tempo real, continuam válidas as palavras do matemático e teólogo francês Bernard Lamy (1640-1715): “Para convencer o povo de que se diz a verdade, basta falar com mais ousadia do que seu adversário; basta gritar mais alto e dizer-lhe mais injúrias do que ele diz, queixar-se dele com mais aspereza, afirmar tudo o que se adianta como oráculos, zombar de suas razões como se fossem ridículas, chorar, se for preciso, como se a verdade que se estivesse defendendo provocasse uma verdadeira dor quando atacada e obscurecida. Aí estão as aparências da verdade. O povo só vê essas aparências, e são elas que convencem.” (“A retórica ou a arte de falar”).

O jornalista americano Walter Lippmann (1889-1974) e o relações públicas austro-americano Edward Bernays (1891-1995) estudaram profundamente as relações entre as notícias, a propaganda e as reações do público. Lippmann, depois de analisar a grande imprensa americana e mundial, chegou à conclusão que as pessoas, inclusive os jornalistas, são mais propensas a acreditar em suas opiniões do que em julgamentos baseados no pensamento crítico. O grande público, segundo Lippmann, não está interessado em investigações aprofundadas e precisas. O cidadão médio está por demais ocupado com seus próprios assuntos, para se preocupar com políticas públicas ou temas parecidos. 

Bernays foi relações públicas, mas teve forte atuação na propaganda, trabalhando para que a indústria americana aumentasse o número de consumidores na primeira metade do século XX. A maneira de Bernays conciliar a manipulação através da propaganda com o liberalismo, estava baseada na convicção de que as massas inevitavelmente sucumbiriam à manipulação. Por isso, o bom propagandista, aquele com objetivos honestos, atua sem qualquer drama de consciência. Bernays estava convencido de que “a minoria que utiliza esta força (a propaganda) é crescentemente inteligente, e trabalha mais e mais a serviço de ideias que são socialmente construtivas.”

O fenômeno das fake news tem a ver com poder e manipulação das massas. A grande diferença em relação aos períodos históricos anteriores e, principalmente em relação ao século XX, é que atualmente a influência sobre as mentes e corações do grande público pode ser exercida por grupos de blogueiros, hackers e demais operadores de mídias sociais, a um custo relativamente baixo. Não é mais necessária a estrutura de um grande jornal, estação de rádio ou canal de televisão. Esta talvez seja uma das razões da preocupação da grande imprensa com o tema. A informação, verdadeira ou falsa, e sua divulgação, para o bem ou para o mal, não são mais monopólios de uns poucos. 
(Imagens: pinturas de Bridget Riley)

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