Mínimas memórias

sábado, 8 de setembro de 2018
"Entre os desejos e as realizações destes transcorre toda a vida humana."   -   Arthur Schopenhauer   -   O mundo como vontade e representação


(Texto publicado originalmente no livro "Vozes Impressas", antologia de textos da Academia Peruibense de Letras - Volume VII, 2016)


"Há assim uma memória involuntária que é total e simultânea. Para recuperar o que ela dá, basta ter passado, sentido a vida; basta ter, como dizia Machado, 'padecido no tempo.'"
Pedro Nava, Baú de Ossos

"Quanto a mim não conheço prazer superior ao de encontrar-me ou reencontrar-me no meio de onde provêm a minha essência animal, no convívio do mar, viagem no mar, banho de mar, vista de mar. "
Gilberto Amado, História de minha infância



O começo

Conheço Peruíbe desde há muito tempo, de quando ainda era subdistrito de Itanhaém e uma aprazível e pacata aldeia de pescadores, só acessível percorrendo-se a praia, ou em demorada viagem de trem. Trouxeram-me para cá meu avós maternos,  que em 1958 construíram uma das primeiras casas de veraneio na rua dos Pescadores. A cidade era ainda encantadoramente pequena. Limitava-se a alguns quarteirões em torno da praça da Matriz e um reduzido número de casas do outro lado da estação do trem da Sorocabana.
A casa foi para mim o meu segundo lar, onde passei muitos períodos de férias. Nessa morada com terraços abertos e amplo terreno, tomado por velhos pés de abacate, pitangueiras, laranjeiras, limoeiros, goiabeiras e até um cajueiro, vivi parte da infância e da juventude. A residência e o quintal repleto de árvores, pássaros; as ruas de areia e os arredores da cidade; o mar e o rio; todos foram parte de meus primeiros contatos com a natureza e com o mundo.  
A poetisa Adélia Prado escreveu uma vez que "tudo que a memória amou já ficou eterno". Para mim, no entanto,  nossas memórias e impressões, aquilo que nos forma e nos torna únicos, morre conosco. Assim, antes que estas poucas recordações desapareçam junto comigo, tento registrar algo daquele período inaugural. Parte do que recordo destes tempos vividos em Peruíbe; lembranças que me acompanham até hoje, mais de meio século depois. Os episódios que relato são mínimos e desimportantes. Pequenos fatos sobre a cidade, que a maioria desconhece. Minhas lembranças. Mas seu eu não registrá-las, quem o fará por mim?  

    


A Padre Anchieta, a curva do 77 e os postes do telégrafo

Esta longa avenida que corta a cidade, fazia a ligação com a estrada construída entre Itanhaém e Peruíbe, em meados dos anos 1960. A estrada demorou para ser concluída, o que fez com que por muitos anos também a Padre Anchieta permanecesse apenas coberta de cascalho, sem asfaltamento, inclusive em seu curso dentro da cidade. Todo tráfego que vinha de Itanhaém e se dirigia para a rodovia Padre Manoel da Nóbrega - à época chamada Estrada da Banana -, passava necessariamente por dentro de Peruíbe, através da Padre Anchieta. Dali os veículos seguiam pela São João e 24 de dezembro até a rua da Estação, que já ficava no fim da cidade - naquela época existiam poucas casas no recém inaugurado Jardim Veneza.
A rodovia entre Peruíbe e Itanhaém percorria um trecho praticamente desabitado à época, cortando a mata que ainda cobria grande parte do região. Quando criança, em noites sem luar, dirigindo meu pai desligava os faróis do carro. Ficávamos alguns minutos fascinados, admirando o céu estrelado, brilhando por entre a floresta escura.
A avenida Padre Anchieta terminava onde hoje é a rotatória e começa a avenida João Abel, no bairro dos Prados. Aquele ponto foi por muito tempo chamado de "curva do 77", já que  segundo o antigo Departamento de Estradas de Rodagem, percorriam-se 77 quilômetros dali até Santos. Ainda no início dos anos 1970, havia ali apenas uma pequena placa, indicando a direção a ser seguida por quem saía de Peruíbe. O desvio era de 90 graus, sem iluminação e cercado por um alto capinzal. Muitos veículos, embalados, não conseguiam fazer a curva e capotavam.
Mas, dos males o menor. Antes da abertura da estrada entre as duas cidades, os automóveis tinham que fazer o percurso pela praia. Para quem fosse fazer a travessia, era necessária a consulta da tábua das marés, nos jornais. Os carros precisavam passar rente ao mar, evitando os barrancos dos riachos. No Piaçaguera, em frente à ilhota onde hoje é o bairro do Gaivota, o motorista tinha que utilizar uma pequena ponte para atravessar o córrego sempre caudaloso.
Na outra ponta, em direção à cidade e ao rio Negro, a Padre Anchieta era um caminho de areia, que terminava quase na beira do rio, no mesmo local onde hoje fica a sede da Polícia Florestal. O caminho era ladeado por poucas casas, que iam rareando à medida que este se afastava do centro. Já perto do rio, a areia da rua era mais grossa, de cor amarelada, diferente de outros pontos da cidade (nunca soube por que razão). À beira do caminho, ainda estavam fincados antigos postes enferrujados, restos do telégrafo do século XIX. A sequência das colunas degradadas se estendia pelo outro lado do rio Negro, adentrava a mata do morro do Itatins, em direção à Prainha e ao Guaraú, para dali seguir para o sul.


A praçinha, a igreja matriz e os alemães

A praça da igreja matriz, a praça monsenhor Lino dos Passos, foi remodelada por três ou quatro vezes ao longo dos últimos 50 anos. Nunca fizeram dela uma praça verdadeira, com árvores frondosas para fazer sombra. Apesar da grande quantidade de pés de joão bolão que existiam na região central de Peruíbe no passado, na praça nunca foi plantada uma única árvore desta espécie, típica da nossa região. Hoje o logradouro lembra um teatro romano; tem pouca área verde e está cercado por estátuas religiosas.
Até o início dos anos 1970, nas noites quentes de verão, quando a praça se transformava em local de reunião e encontro, surgiam frequentemente gigantescas baratas d'água, causando alvoroço. Com o passar dos anos, no entanto, as construções avançaram sobre as áreas verdes e os córregos limpos, a céu aberto, foram cimentados. As baratas d'água, ressentidas, não deram mais as caras na pracinha.
Li em algum lugar que o pintor itanhaense Emygdio Emiliano de Souza pintou um quadro retratando a praça matriz de Peruíbe. A obra, que data de 1893, é de interesse histórico mas é pouco conhecida e vista. Uma pena para nossa cidade, que tão poucas imagens tem de seu passado.
Pelo menos até o final dos anos 1960, a igreja matriz não era muito maior do que uma capela. Durante a década seguinte o templo foi gradualmente ampliado, chegando às dimensões que tem hoje. Ao lado da igreja, onde agora se encontra o centro de compras havia um terreno vazio, em parte um areão, que na temporada era ocupado pelos parques de diversão itinerantes. No mesmo lugar, no início dos anos 1960, havia uma barraca de sapê, onde os índios da reserva vendiam seu artesanato.    
Durante a infância conheci muitos imigrantes alemães que moravam em Peruíbe, amigos dos meus pais. Na rua Tucuruví vivia o Sr. Senz, carpinteiro aposentado, morador da cidade desde os anos 1950. Mais à frente, seguindo a rua em direção à Almirante Barroso, perto da velha mangueira (que está lá até hoje), morava o Sr. Otto, que tinha sido dono de uma pequena fábrica em São Paulo. O casal Wagner, também velhos moradores, ficavam na atual rua Ministro Genésio de Moura (perto da antiga delegacia, instalada no prédio onde hoje é a biblioteca municipal). Na rua Santos Dumont, quase esquina com a José Veneza, estava o Otto cozinheiro, antigo tripulante do navio alemão Windhuck, aprisionado pelo Brasil durante a 2ª Guerra. Lembro vagamente do casal Heide, que perto da praia construiu uma casa moderna para a época, quando tudo era um imenso areal e nem rua havia (hoje a rua Erasmo Pinheiro Ribas). No início da Estrada do Guaraú, esquina com a hoje rua Dalmar da Costa, ficava o bar do casal Müller, alemães que moravam em Peruíbe desde os anos 1950. O local era parada obrigatória para quem voltava da Prainha ou Guaraú em dias de muito calor.
O "Opa" Weiss (Opa, avô em alemão) foi um dos membros mais conhecidos da colônia alemã. Aposentado e pescador amador, Opa Weiss foi um dos primeiros paulistanos a ter um barco com motor de popa em Peruíbe. Nos últimos anos de vida dedicou-se à pintura, copiando quadros de pintores famosos. Antes de morrer, pintou e doou à igreja a Via Crucis, que ainda hoje pode ser vista no templo.
Entre os anos de 1950 a 1980 havia em Peruíbe uma pequena colônia de alemães e descendentes, que se conhecia e frequentava. Destes, ainda guardo na lembrança os nomes do "seu" Augusto e "dona" Ivone, Sr. Paulo Becker; as famílias Stender, Nusch, von Zengen, Kohn, Motz, Kunde, Weiss e Rösner. Quase todos já falecidos, viveram e foram felizes durante muitos anos em Peruíbe.


Olha o trem chegando!

Quem não viajou para Peruíbe pelos trens da Sorocabana e da FEPASA não sabe o que é bom. Bom, mas demorado. Viajava-se seis a sete horas da estação do Socorro, na Zona Sul de São Paulo, até a estação de Peruíbe. Antes de descer a serra, a composição percorria parte dos bairros da região sul de São Paulo, que à época eram pouco povoados. Às vezes entrava no trem uma família de indígenas; subiam em uma estação e desciam em outra, no meio da neblina da serra.
O trem fazia um ruído característico, cadenciado: "Tactac-tactac! Tactac-tactac! E isso intercalado por um zumbido, cuja intensidade aumentava e diminuía regularmente - suponho que fosse o atrito das rodas nos trilhos, não sei. As paradas nas estações eram constantes. Antes de retomar a viagem, o fiscal verificava se todos haviam embarcado, apitava, para logo depois o maquinista tocar a buzina e colocar o trem em marcha. E lá íamos nós, até a próxima estação, numa velocidade média de 40 a 50 quilômetros por hora.
Viajar de trem era uma festa, principalmente para as crianças e os jovens. Na volta para São Paulo, no final das férias, os passageiros chegavam à estação a pé, alguns de carro e muitos nas charretes, que há 50 ou 60 anos faziam o trajeto entre o centro e a estação. Uma multidão ocupava os vagões. Durante a viagem, a composição passava por muitas estações até que chegasse em Samaritá, em São Vicente. Lá engatava-se uma locomotiva mais forte, que puxava o pesado comboio de passageiros serra acima.
Os corredores ficavam apinhados de malas, bolsas, sacolas, pacotes, caixas e gente, muita gente! Conversando, gritando, cantando, olhando pensativos pela janela. Além da bagagem, trazíamos na memória os dias de sol na praia, as pescarias, as caminhadas pelo morro e pelas ruas de areia, o descanso na rede, o céu estrelado, o canto dos pássaros, o cricrilar dos grilos, as fortes trovoadas de madrugada...

(Imagens: pinturas de Wayne Thiebaud)

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