Percepção, metáfora e alegoria

sábado, 15 de setembro de 2018
"Sempre chamo razão essa aparência de discurso que cada um forja em si."   -   Michel de Montaigne   -   Os Ensaios


(Texto publicado originalmente no livro "Trocando em palavras", antologia de textos da Academia Peruibense de Letras, Volume VIII, 2017)


Há algumas décadas a ciência vem aprofundando o conhecimento sobre nossa relação com o mundo, ou seja, a maneira como percebemos a realidade exterior ao nosso corpo. Não nos alongando em especificidades científicas - mesmo porque não temos tal conhecimento - basta mencionar que aquilo que vemos é em grande parte uma elaboração do nosso cérebro. A partir de um número limitado de informações coletadas pelos sentidos, nosso encéfalo compõe aquilo que temos a impressão de estarmos vendo. O que nos parece estarmos ouvindo também é a interpretação que nosso cérebro faz das vibrações no ar, que vindas do mundo exterior atingem nossos tímpanos.
   
Cheiros e gostos, já ensinavam os antigos filósofos céticos da Grécia, variam de pessoa para pessoa e até de acordo com seu estado de saúde; o mesmo vale para as sensações de tato. Assim, algumas pessoas são mais resistentes ao frio e ao calor que outras. A história de Roma eternizou a figura de Caio Múcio Cévola, cidadão da nascente república, a qual estava em guerra com o povo etrusco. Sem manifestar qualquer reação à dor, o herói romano manteve sua mão sobre um braseiro, enquanto era interrogado pelo rei inimigo Porsena. Consta Cévola ter dito: "Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!"

O que dizer da relatividade da nossa percepção do tempo? Santo Agostinho, filósofo cristão do século IV, dizia em relação ao tempo que "Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei." É nessa dimensão temporal que vivemos, que a muitos parece ser preocupação apenas de especialistas, como historiadores, geólogos ou físicos. Como avaliar a rocha, recentemente descoberta na Austrália, em cuja superfície se pôde constatar a ação de microrganismos ocorrida há dois bilhões de anos? E como imaginar o femtosegundo, medida de tempo criada pelos físicos de partículas, cuja duração é de uma quaquilionésima (1x10-15) parte de um segundo? Cabem tantos femtosegundos em um segundo, quanto segundos em 100 milhões de anos.

Nosso cérebro é, como escreveu o neurocientista David Eagleman, "Encerrado em absoluta escuridão na caverna do crânio. Ele não vê nada. Só sabe destes pequenos sinais e nada mais. E, no entanto, você percebe o mundo em todos os tons de luminosidade e cor." De acordo com a moderna neurologia e psicologia, nosso cérebro reconstitui as sensações que recebemos através dos sentidos, formando impressões, às quais reagimos de maneira consciente e inconsciente. Grande parte da atividade cerebral, aliás, não ocorre no nível da consciência e por isso Freud disse que "o eu não é senhor em sua própria casa".
Com diversas gradações e algumas diferenças, é desta maneira que, com maior ou menor grau de complexidade, todos os seres vivos interagem (e interagiram) com seu ambiente. Considerando a multiplicidade de espécies atualmente existentes na Terra - cerca de nove milhões -, é possível afirmar que apesar de dispor de um sistema sensitivo (aparentemente) limitado, a vida tem sido bem sucedida em sobreviver sobre o planeta. E isto ocorreu, entre outras razões, porque a percepção do ambiente, da bactéria ao Homo sapiens, é movida pela intencionalidade, consciente ou não.

Munido de um cérebro volumoso e de conexões neuronais em crescente aumento, nossa espécie pôde, há aproximadamente 38 mil anos, dar início a uma nova forma de sobreviver e viver no mundo; através da cultura. Apesar de não termos sido a única espécie Homo a desenvolver atividade mental superior - conhecemos o caso dos Neanderthais -, somos, todavia, a única que sobreviveu para contar a história.

Ao longo dos últimos dez mil anos a cultura humana se ampliou através de invenções como a da agricultura, da cerâmica, da fundição dos metais, das cidades, do comércio, da tecnologia, da indústria, e das grandes infraestruturas.
Junto e em função do saber material, nossa espécie também desenvolveu um conhecimento espiritual, formado pelos sistema de ideias de interpretação e explicação do mundo; sejam filosóficos, políticos, religiosos ou científicos, todos intrinsecamente ligados às invenções materiais.

Nos últimos cem anos, a acumulação de conhecimento científico e filosófico, fez com que fossem colocadas em cheque as explicações científicas e os discursos religiosos sobre a realidade e seu funcionamento. Foi forçoso concluir, que mesmo as mais comprovadas teorias, não representavam mais a explicação incontestável sobre o universo externo e interno ao ser humano. Novas hipóteses sobre o macro e microuniverso; revolucionárias descobertas acerca da mente do homem, da sociedade e dos componentes básicos da vida, derrubam toda as certezas, principalmente no campo das ideologias.

Todas estas novas ideias não conduzem a um niilismo sem perspectivas, em absoluto. Mas no moderno pensamento é cada vez mais corrente a ideia de que os nossos discursos sobre a vida e o mundo - ideologias políticas, religiões, culturas - podem ser interpretados como alegorias sobre uma realidade complexa e que não abarcamos em sua totalidade. A própria linguagem, segundo o filósofo Nietzsche, pode ser considerada uma metáfora da realidade.
A teoria científica também é uma explicação precária de um fenômeno natural, um paradigma científico, que será substituído por outro mais adequado, como escreve o filósofo da ciência Thomas Kuhn.

Alguns assim dizem que a vida humana pode ser comparada a uma alegoria, passando pela sátira, pelo apólogo ou até a fábula. Sobre esta comparação, encerramos nosso texto com a afirmação do filósofo francês, La Mothe Le Vayer: "Toda a nossa vida é, na verdade, uma fábula; nosso conhecimento uma asneira; nossas certezas, uma ilusão; resumindo, todo este mundo é apenas uma farsa, uma perpétua comédia."

(Imagens: pinturas de James Rosenquist)

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