A história e os "tempos interessantes"

sábado, 2 de setembro de 2023


"Para a natureza, é apenas a nossa existência, e não nosso bem-estar que tem importância."   -   Arthur Schopenhauer   -   A arte de envelhecer    


Vivemos “tempos interessantes”. Na antiga tradição chinesa, tempos interessantes significavam mudanças, ausência de tranquilidade e paz, agitação e tribulação. Não coincidentemente, o historiador Eric Hobsbawm deu o título de Tempos Interessantes à sua autobiografia, lançada em 2002.

Hobsbawm, aliás, viveu tempos de grande agitação e mudanças. Nasceu no período da Revolução Russa (1917), no final da 1ª Guerra Mundial (1914-1918), passou pela crise financeira de 1929, viu a 2ª Guerra Mundial (1939-1945), a Guerra da Coréia (1950-1953), a Guerra do Vietnã (1959-1975), desfrutou dos “30 anos dourados do capitalismo (1950-1980)”, acompanhou a dissolução da União Soviética (1991), e muito mais. Uma sucessão de acontecimentos de grande importância na história da humanidade e um vasto campo de pesquisa para um historiador de porte, como o foi Hobsbawm (1917-2012).

Durante toda a história, sempre houve os “tempos interessantes”, dependendo do grau de importância que se quer dar a um evento e do foco da análise. Qual período histórico considerar? A história da humanidade, a do Brasil ou de certo período específico da cronografia brasileira? Nessa ótica, a queda de um avião, provocando a morte de várias pessoas, pode ter pouca importância local ou praticamente nenhuma do ponto de vista histórico. Mas tudo muda, quando a bordo da nave viaja um candidato a presidente, como no caso do acidente aéreo que vitimou Eduardo Campos, candidato do PSB às eleições presidenciais de 2014. De que maneira teria se desenrolado a história recente do Brasil, se Eduardo Campos tivesse concorrido ao pleito? Não saberemos nunca. A história também é isso; o relato dos acontecimentos que mudam uma situação, dando um novo rumo ao desenrolar histórico, no qual novas condições levarão a acontecimentos diferentes daqueles vigentes inicialmente. Ou seja, com a morte do candidato, as eleições tomaram outro rumo, que resultaram numa situação diferente do país, daquela imaginada antes do acidente.

Estas mudanças de caminho na história por vezes conduzem aos mencionados tempos interessantes; trazendo agitação e tribulação. São consequências dos acontecimentos históricos, que retroativamente nos permitem classifica-los na categoria de “tempos interessantes”. O quanto, por exemplo, a Guerra da Ucrânia influenciará a história humana? Além dos milhares de mortos e o horror inerente a qualquer guerra, quais serão suas repercussões no desenvolvimento da economia mundial e europeia, nas relações políticas entre países da região e na formação de novos blocos aliados de nações, abalando hegemonias estabelecidas? Qual foi o impacto imediato da sindemia da Covid 19 em várias áreas das atividades humanas e quais efeitos – na economia, na saúde, na educação, na ciência, etc. – ainda são esperadas para o futuro?

Como será o desenvolvimento da economia mundial, face à visível crise do sistema capitalista? Informações mais recentes dão conta de que a economia chinesa apresenta sinais de exaustão, com queda de produção, já que a demanda agregada, interna e externa, vem decrescendo. O principal motor da economia europeia, a Alemanha, registrou uma inflação de 6,9% em 2022, índice inimaginável até há poucos anos. Com dois trimestres consecutivos de contração de sua economia, a Europa encontrava-se em recessão em junho deste ano. Já nos Estados Unidos, os especialistas preveem o início de um processo recessivo na economia, a partir do segundo semestre de 2023. Para muitos economistas chegamos a um beco sem saída com nosso sistema econômico. O que vemos ocorrer no Brasil reflete, aproximadamente, o quadro geral: redução do número de empregos, salários mais baixos, queda do consumo, fazendo com que diminuam os investimentos em novos negócios. Os capitais disponíveis deixam de ser investidos em atividades produtivas, deslocando-se para o mercado financeiro; mais rentável e (ainda) seguro.

Numa alusão ao Manifesto Comunista (1848) de Karl Marx e Friedrich Engels, também podemos dizer que “um espectro ronda o mundo (não só a Europa, como dizia o Manifesto), o espectro das mudanças climáticas”. Este, muito mais potente e assustador do que queriam fazer parecer o comunismo no século XIX. As ocorrências significativas relacionadas ao clima se acumularam ao longo das últimas duas décadas, num ritmo crescente. Secas na África e na Índia, calor intenso no verão europeu e estadunidense, enchentes arrasadoras na China; aumento da incidência de ciclones no Sul do Brasil, aquecimento geral dos oceanos, aumento da velocidade do derretimento das geleiras nos polos, entre outros fenômenos. Este desequilíbrio no clima da Terra só tende a aumentar, provocando mais desastres naturais, aliados aos impactos na agricultura e infraestruturas (transporte, energia, comunicações) dos países – principalmente aqueles situados no hemisfério sul do planeta.

Se o quadro a curto e médio prazo já pode ser considerado como um “tempo interessante”, dadas as consequências dos fatos que já estamos vivendo e outros que podemos prever, acrescente-se a isso ainda o aparecimento de uma nova sindemia global, como a Covid-19. A hipótese é estudada com bastante seriedade por muitos especialistas e mobiliza os sistemas de saúde pública de vários países.

As previsões que se fazem sobre o futuro, só se tornarão história se efetivamente ocorrerem. Mas no decorrer dos fatos, no calor dos acontecimentos, é preciso tentar – às vezes é moderadamente possível – compreender e antecipar o rumo que a história tomará.


(Imagens: pinturas de Flávio de Carvalho) 

0 comments:

Postar um comentário