Ainda é possível ser otimista?

sábado, 18 de novembro de 2023

 

"Mas a matemática não é uma ciência natural. Ela em si, sem observação, não pode nos dizer nada sobre o mundo. E os teoremas matemáticos não podem ser verificados nem refutados pela observação do mundo."   -   Steven Weinberg   -   Para explicar o mundo - Descoberta da ciência moderna     



“‘Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais.’ Sendo nosso mal a história, o eclipse da história, devemos insistir nas palavras de Valéry, agravar seu alcance: sabemos agora que a civilização é mortal, que galopamos em direção a horizontes de apoplexia, a milagres do pior, à idade de ouro do pânico.”

E. M. Cioran, Silogismos da amargura

 

"O tema da insensatez coletiva da humanidade não é novo, e você poderá questionar se existe algo a ser acrescentado à grande pesquisa que o poeta escocês Mackay publicou em 1852, intitulada Extraordinary Popular Delusions and the Madness of Crouds (Ilusões Populares Extraordinária e a Loucura das Massas). O estudo de Mackay sobre profecias, superstições, caça às bruxas e cruzadas é um lembrete sombrio de que todas as coisas que ele sarcasticamente descreve continuaram a ocorrer, desde que seu livro foi publicado, com a mesma frequência e com efeitos piores. Mackay achava que a humanidade tinha finalmente entrado num período de conhecimento científico, em que as multidões se permitiriam ser corrigidas pelos especialistas que, no passado, elas haviam preferido queimar nas fogueiras. Nada poderia estar mais longe da verdade. Os grandes movimentos de massa do comunismo, do nazismo e do fascismo, em que falsas esperanças acabaram se transformando em exércitos em marcha, ainda não haviam aparecido na linha do horizonte."

Roger Scruton, As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança

 

"Schopenhauer tem uma visão muito pragmática e restritiva do papel do Estado; ele não pode extirpar todos os males humanos. Para o teórico da vontade cega, a vida social e política do homem não é um caminho em direção à perfeição moral, mas um ardil para vigiar o 'animal feroz' que é o homem."

José Thomaz Brum, O pessimismo e suas vontades - Schopenhauer e Nietzsche

 

 

A pergunta se tornou novamente atual: “Ainda é possível ser otimista?” Nos últimos anos e, mais recentemente, nos últimos meses, parece que se tornou cada vez mais difícil não ser pessimista em relação ao futuro – pelo menos no curto e médio prazo. Atualmente, a população da maior parte dos países está mais propensa a afirmar que o “copo está meio vazio, ao invés de meio cheio”. Acontecimentos locais e mundiais ocorridos nos últimos anos indicam que, em diversos aspectos, o mundo está se tornando um lugar mais desagradável para se viver, comparado às últimas décadas do século XX.

Num curto espaço de tempo menor do que uma vida humana ocorreram eventos que tiveram, e ainda têm, um impacto negativo na história humana e na vida individual da maior parte das pessoas. Há quinze anos, o mundo entrou numa crise financeira, chamada de “a crise dos subprimes”, os chamados “créditos podres”, originada no mercado financeiro dos Estados Unidos, que provocou grandes danos em todo o complexo financeiro mundial e às economias de todos os países. Quebra de empresas, desemprego em massa, queda do consumo, dos investimentos e do comércio internacional; fatores que causaram a diminuição da atividade econômica em todos os países. (https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2021/10/10/crise-financeira-colapso-que-ameacou-o-capitalismo.htm).

Mal o mundo havia se recuperado da crise de 2008 – até hoje alguns países não recuperaram suas economias – e surgiu a pandemia (ou sindemia) da Covid-19. O que parecia ser apenas um foco de uma nova gripe (influenza), localizado em Wuhan, região altamente industrializada no interior da China, em poucos dias se alastrou para a Europa, Estados Unidos e também para o restante do planeta. A gravidade da doença lotou as UTIs de todos os hospitais, colocando o sistema de saúde da maioria dos países em estado de alerta máximo, sem capacidade de atender todos doentes.  A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que a sindemia causou cerca de 14,9 milhões de mortes oficialmente registradas em todo o mundo, com cerca de 800 milhões de pessoas contaminadas. No Brasil, em parte graças à má vontade e desorganização do governo, principalmente dos executivos do Ministério da Saúde, morreram cerca de 700 mil pessoas, segundo os dados oficiais, mas estima-se que o número efetivo de óbitos seja maior. (https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19).

A sindemia se estendeu de março de 2020 a maio de 2023, quando a OMS declarou oficialmente encerrada o estado de emergência global. Na prática, até que a situação começasse a ser normalizada com a chegada das vacinas, foram cerca de quinze meses. O impacto da Covid na economia global foi ainda maior do que a crise dos subprimes: durante várias semanas fábricas, lojas, escritórios, mercados, aeroportos e estradas, ficaram praticamente vazios, dado que muitos países e municípios decretaram o lockdown; o bloqueio total das atividades e da circulação de pessoas. Mais uma vez a atividade econômica foi duramente afetada, provocando o posterior fechamento de milhões de empresas e negócios, causando centenas de milhões de demissões mundo afora, com todas as suas consequências. (https://www.worldbank.org/pt/publication/wdr2022/brief/chapter-1-introduction-the-economic-impacts-of-the-covid-19-crisis).

Não vamos nos alongar demais em assuntos que, tendo ocorrido recentemente, são do conhecimento de todos. No entanto, para atualizar esta lista de acontecimentos históricos do século XXI (o século mal começou e ainda podem ocorrer muitas coisas) cabe ainda mencionar a invasão da Ucrânia pela Rússia, em 24 de fevereiro de 2022, e o ataque do grupo Hamas a Israel, ocorrido em sete de outubro de 2023.

Todos estes fatos estão mostrando um novo quadro da economia e política mundial, que começa a se delinear. Muito do que ocorre e poderá ocorrer, no entanto, já estava germinando nos anos anteriores a estes eventos. Se antes de 2008 o capitalismo mundial já vinha mostrando sinais de exaustão, os acontecimentos que se seguiram só fizeram precipitar a situação. Alguns aspectos do quadro mostram que:

- Acentuou-se ainda mais uma tendência que já vinha caracterizando o capitalismo em sua fase financeira desde os anos 1980: a diminuição da remuneração do capital (lucros); a redução de empregos no setor produtivo das economias ocidentais (o que melhor remunera); e a diminuição da média dos salários e da proteção do trabalhador;

- A ascensão da China, com sua pujante economia, ultrapassando as de todos os outros países e começando a ameaçar a posição de liderança dos Estados Unidos. Nos últimos meses, todavia, a atividade econômica na China vem mostrando uma tendência de crescimento menor do que em anos anteriores;

-  A crise da economia americana, que apesar da recuperação, não consegue reduzir os índices de pobreza (40 milhões de pessoas são pobres) e recuperar a média salarial das décadas passadas (o salário do trabalhador americano vem caindo gradualmente desde os anos 1980);

-   Na Europa, principalmente o motor da economia europeia, a Alemanha, começa a enfrentar uma crise econômica mais prolongada, acentuada por uma crise energética provocada pela suspensão do fornecimento do gás russo;

-  Começa a formação de um mundo multipolar, depois de um mundo bipolar (USA e URSS) durante a Guerra Fria, e um mundo monopolar (USA) depois da Queda do Muro de Berlim. O reaparecimento do protagonismo da Rússia na cena estratégica mundial e o fortalecimento da posição da China são indícios da formação deste novo mundo multipolar. Os BRICs, antes integrados por Brasil, Rússia, China e África do Sul, receberam novos membros em setembro de 2023: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes, Etiópia e Irã. Além disso, outros 40 países também mostraram interesse em integrar o grupo;

- O recente embate entre o grupo Hamas representando o povo palestino e o estado de Israel, pode acelerar a formação de um mundo multipolar. Na estratégia internacional Israel representa o poderio norte-americano na região, e por isso está recebendo maciço apoio dos Estados Unidos. No entanto, a forma como Israel está conduzindo o combate na faixa de Gaza, atacando hospitais, ambulâncias e civis indefesos, está levantando protestos em todo o mundo, inclusive no próprio país. Por extensão, estes protestos também se dirigem contra o governo dos Estados Unidos e os países europeus que também o apoiam. Alguns analistas avaliam que a situação fortalece a união do que chamam de “Sul Global”, em oposição ao domínio estadunidense;

-   Além da presente crise do sistema capitalista, que com altos e baixos se arrasta há mais de vinte anos (e também por causa dela), ocorrem conflitos armados, como na Ucrânia, na Palestina, em Ruanda, Etiópia, Iémen, Burkina Faso, Somália, Sudão, Mianmar, Nigéria; e outros diplomáticos, espalhados por várias regiões do planeta, podendo evoluir eventualmente para guerras. (https://www.bbc.com/portuguese/articles/c192m733912o);

-  Outra ameaça ao planeta são as mudanças climáticas, que ocorrem em um ritmo cada vez mais rápido. Calor intenso, secas, chuvas e ventos fortes no Brasil, inverno rigoroso que chega antecipadamente na China, secas na Índia, etc., etc. Os fenômenos tornam-se cada vez mais intensos e frequentes, além das expectativas da maior parte dos cientistas. Não vamos aqui elencar, mais uma vez, a infinidade de consequências da crise climática para a humanidade. Os primeiros indícios são noticiados, quase diariamente, na mídia. Todavia, continuamos sistematicamente destruindo os recursos naturais do planeta.  

Pesquisa realizada pelo Instituto Gallup publicada em 2019 e realizada em 2018 – portanto ainda antes dos acontecimentos mencionados acima – informa que o mundo está “mais triste e cheio de raiva”. (https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Saude/noticia/2019/05/o-mundo-esta-mais-triste-e-cheio-de-raiva-afirma-pesquisa.html). Quem num mundo como o atual pode ser otimista? No entanto, tudo pode mudar. Às vezes as mudanças são rápidas, mas no momento é esse o quadro visto pela maioria das pessoas. O filósofo Terry Engleton escreve que “Assim como seu parente próximo, o pessimismo, o otimismo é mais um sistema de racionalização do que uma lente confiável através da qual mirar a realidade, refletindo uma postura do temperamento em vez de verdadeiro discernimento.”

Tudo é uma questão de perspectiva, dizem alguns. Basta olhar os fatos sob outra ótica ou perspectiva mais ampla, para que o horizonte se torne mais claro. Pode até ser, dependendo da questão que se analisa. Autores prestigiados, como o jornalista e escritor Matt Ridley e o psicólogo Steven Pinker, defendem uma visão otimista da situação atual e do futuro da humanidade em seus livros. Ridley, em seu O otimista racional – como a prosperidade evolui (2010), discute a tendência humana de trocar mercadorias e serviços e de como isto trouxe a especialização de habilidades, o desenvolvimento da civilização e o aumento da prosperidade (que em sua perspectiva só vai aumentar). Pinker em O novo iluminismo (2018) argumenta que os valores do Iluminismo do século XVIII, como a racionalidade, a ciência e o humanismo, trouxeram prosperidade, saúde, segurança, paz e felicidade. O livro é uma continuação de seu Os anjos bons da nossa natureza (2013), no qual defende a ideia de que a violência nas sociedades humanas está decrescendo ao longo dos séculos devido à incorporação destes valores.

Uma visão diferente e menos otimista é defendida pelo filósofo e escritor John Gray, autor de livros como Falso Amanhecer – Os equívocos do capitalismo global (1998), Cachorros de palha (2002), A busca pela imortalidade – A obsessão humana em ludibriar a morte (2011), O silêncio dos inocentes – sobre o progresso e outros mitos modernos (2013) e A alma da marionete – um breve ensaio sobre a liberdade humana (2015), entre outros. Em suas obras Gray trata a crença na marcha ininterrupta do progresso de uma maneira bastante cética. O aprimoramento da espécie humana escreve Gray, acontece nas ciências, na tecnologia, nas instituições, mas não no ser humano. Guardamos os mesmos instintos e impulsos de nossos antepassados de milhares de anos atrás. Ideias parecidas são defendidas por Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, em seu livro O mal-estar na civilização (1930):

“Essa tendência à agressão, que podemos detectar em nós mesmos e presumir justamente que está presente em outros, é o fator que perturba nossas relações com nosso vizinho e que força a civilização a um gasto tão grande [de energia]. Em consequência dessa hostilidade primitiva entre os seres humanos, a sociedade civilizada está sob constante ameaça de desintegração. O interesse do trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização precisa usar seus maiores esforços para impor limites aos instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por meio da formação de reações psíquicas.” (Freud, apud Neil Ferguson)¹.

 

¹ Neil Ferguson. Civilização Ocidente X Oriente. Editora Planeta. São Paulo: 2021, 432 p.


(Imagens: pinturas de Otto Mueller)

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