Aspectos históricos da gestão dos resíduos

quarta-feira, 18 de maio de 2011
"Uma coisa é verificar opiniões dos filósofos e descrevê-las. Outra coisa bem diferente é debater com eles aquilo que dizem, e isto quer dizer, do que falam."  -  Martin Heidegger  -  Que é isto - a filosofia?

Há milhares de anos, quando a população humana ainda era reduzida, o volume de resíduos produzidos pelos homens era menor e podia ser incorporado à natureza por ser de origem exclusivamente orgânica; éramos apenas algumas dezenas de milhares de indivíduos nômades, caçadores e coletores, vagando por toda a Terra. Os únicos resíduos de atividade humana que nos chegaram deste tempo são lascas de pedra (sílex), resíduos das atividades de fabricação de machados. Os paleontólogos conseguiram identificar verdadeiras “oficinas” de machados em diversos pontos da Europa, contendo grandes quantidades destas sobras de pedras. Todavia, por volta de dez mil anos atrás, ocorreram grandes mudanças; o clima ficou mais quente, fazendo com que muitos animais caçados pelo homem migrassem para outras regiões, ou se tornassem extintos – a mudança do clima estava alterando a vegetação e com isso toda a cadeia alimentar. Para sobreviver, grupos humanos se estabeleceram em regiões onde havia abundância de água e clima ameno, passando a praticar regularmente a agricultura. Esta já era conhecida, mas era feita de forma esporádica, provavelmente depois que se descobriu que os grãos de certos vegetais, jogados ao solo, germinavam e produziam plantas que davam os mesmos grãos e frutos, tempos depois. A prática regular e sistemática do plantio e do pastoreio aumentou bastante a oferta de alimento; o homem não dependia mais exclusivamente da disponibilidade de caça para garantir sua alimentação.
Ao longo dos séculos, as aglomerações humanas em torno dos campos cultivados ganharam em tamanho, transformando-se nas primeiras cidades. Estas ocupavam regiões às margens de rios, como o Tigris e o Eufrates, localizados na atual Síria e Iraque. Ao mesmo tempo em que criava os centros urbanos, o homem desenvolvia (provavelmente também em razão de uma descoberta casual) a técnica da cerâmica. Assim, os primeiros resíduos de materiais transformados quimicamente pelo homem foram os dos objetos de cerâmica. Vasos, restos de tijolos e telhas, pratos e tabuinhas de argila sobre as quais estavam fixados registros escritos, foram os primeiros restos culturais, que se conservaram até os nossos dias e que fornecem muitas informações sobre aqueles períodos passados.
Arqueólogos encontraram muitos dados sobre a história do homem e das culturas que este criou, literalmente no lixo das antigas civilizações. Com a pesquisa de ruínas de cidades e de documentos escritos, foi possível escrever uma história da gestão dos resíduos urbanos. Alguns dos principais marcos nesta longa história foram os seguintes:
- O mais antigo aterro sanitário até hoje descoberto, está localizado na ilha de Creta, no Mar Mediterrâneo, tendo sido construído pela antiga cultura micênica, ligada ao palácio de Cnossos, em cerca de 3.000 a.C. Nesta primitiva construção o lixo era colocado em grandes covas, acondicionado em sucessivas camadas, cobertas por terra;
- A invenção (ou descoberta) da fundição de metais representou uma nova fase no desenvolvimento tecnológico e, consequentemente, na geração de resíduos. A técnica, descoberta em torno de 3.000 a.C., também propiciou, pela primeira vez, a reciclagem de objetos (refundição e transformação em outro produto) e o reuso de restos de fundição;
- Desde aproximadamente 2.000 a.C. a técnica da compostagem passa a ser aplicada e desenvolvida na antiga China, como forma de manter a fertilidade do solo. Os camponeses do “Império do Meio” desenvolveram técnicas que em parte até hoje ainda são aplicadas;
- A partir de cerca de 500 a.C. Atenas é a primeira cidade européia a construir um aterro sanitário planejado. Uma lei específica determina que todo o lixo seja removido para pelo menos dois quilômetros além dos portões da cidade;
- A Europa medieval, principalmente a partir do século XI, quando da reurbanização e do retorno do comércio entre as regiões, é assolada por diversas pragas provocadas pela maneira incorreta de lidar com os resíduos. Não era incomum nas cidades medievais, que se jogasse o lixo e os resíduos sanitários pelas janelas das casas para a rua. O costume provavelmente deveria causar muitos incômodos aos transeuntes, já que em 1185 a prefeitura de Paris instituiu uma lei proibindo jogar o lixo através das janelas para o passeio público;
- Avançando um pouco mais na legislação, a cidade de Nápoles determina em 1220 que o lixo deveria ser jogado em lugares preestabelecidos dentro das cidades e que os cidadãos que desrespeitassem a lei seriam severamente punidos;
- O problema do lixo urbano – e a aparente resistência da população em destiná-lo corretamente – era tão sério, que em 1297 a Inglaterra teve que elaborar uma lei determinando que todos os moradores das cidades mantivessem limpas as frentes de suas casas. Todavia, a lei, segundo os historiadores, foi quase 
ignorada;
- Nas cidades, com o passar das décadas, a água superficial contaminada por resíduos foi penetrando no lençol freático e poluindo as fontes urbanas de água. Com o acúmulo de lixo no solo e nos rios, eram muito freqüentes os casos de epidemias de febre tifóide. Uma percentagem considerável da população infantil morria nos primeiros anos de vida, devido à água contaminada. Outro aspecto é que o ajuntamento de grandes volumes de lixo criava um ambiente propício para a sobrevivência dos ratos. Entre 1346 e 1353 a Europa foi assolada por uma epidemia de peste bubônica, originária da Ásia e transmitida pela pulga do rato. No espaço de alguns anos a doença – chamada de Peste Negra por causa das manchas que apareciam no corpo das vítimas – conseguiu dizimar quase um terço da população de toda a Europa. Mesmo com tais catástrofes, era desconhecido da maior parte da população o nexo entre o acúmulo de lixo e excrementos nas cidades e o aparecimento de doenças e epidemias;
- Em 1354, logo após a Peste Negra, a prefeitura de Londres emprega funcionários cuja tarefa era coletar o lixo, colocá-lo em carretas e levá-lo para fora da cidade, uma vez por semana. Em 1388 o parlamento inglês publica lei proibindo jogar lixo em rios e canais. Uma outra lei de 1407 estabelecia que os resíduos domésticos devessem permanecer no interior das casas, até que os coletores viessem buscá-los. O lixo era então vendido como adubo para os camponeses, ou jogado em área previamente designada pela administração;
- A partir do início do século XV as prefeituras das mais importantes cidades da Alemanha já haviam criado regras, estabelecendo que as carroças que trouxessem produtos e mercadorias para dentro das cidades, também seriam obrigadas a levar o lixo para fora dos limites urbanos;
- Em 1506 o rei Luis XII da França decide organizar um sistema nacional de coleta de lixo, cobrindo todas as principais cidades francesas.
É a partir deste período, o século XVI, que o gerenciamento do resíduo urbano passa a ser uma preocupação cada vez maior para as administrações públicas. No entanto a idéia, assim como qualquer iniciativa nova, não se impõe de imediato. Considere-se também que a correta gestão dos resíduos requer investimentos e regularização de atividades que antes eram praticadas livremente; o que implicava em ferir interesses políticos e econômicos. São necessárias várias gerações, para que a maioria das cidades européias institua sistemas de coleta de resíduos eficientes.
O marco do moderno gerenciamento de resíduos, porém, foi estabelecido na Inglaterra, em 1842. Neste ano Edwin Chadwick publica seu estudo “Relatório a Respeito da Pesquisa sobre a Condição Sanitária da População Trabalhadora na Grã Bretanha” (Report of an Inquiry into the Sanitary Condition of the Labouring Population of Great Britain), que estabelece definitivamente o vínculo entre o aparecimento de certas doenças e as péssimas condições de saneamento das cidades, principalmente nos bairros mais pobres. Logo depois, no espaço de alguns anos, quase todas as cidades da Inglaterra passaram sistematicamente a incinerar o seu lixo. Em 1848, através da “Lei de Saúde Pública” (Public Health Act) o governo britânico começa a estabelecer as bases para uma legislação referente ao gerenciamento de resíduos. 
No Brasil a história do gerenciamento é mais recente, já que nosso desenvolvimento urbano e industrial é posterior ao dos países europeus. A literatura especializada disponível sobre as condições de moradia, a administração das cidades e a organização do saneamento no período colonial e parte do século XIX ainda é bastante esparsa, aguardando o interesse e a iniciativa de nossos historiadores. Em linhas gerais, podemos dizer que as cidades brasileiras deste período eram menos desenvolvidas e cosmopolitas do que as cidades européias. Salvador, Recife e depois Rio de Janeiro tinham uma estrutura de serviço público melhor, enquanto cidades como São Paulo – por sua localização geográfica e pouca importância políticosocial – mantiveram uma estrutura sanitária pouco desenvolvida por longo tempo.
Em seu texto Por uma história do lixo, Rosana Miziara escreve que uma das primeiras referências à limpeza pública em São Paulo é uma comunicação da Câmara Municipal de 1623, escrita por ocasião das festas religiosas, convidando os donos de casas a “limpar e carpir testadas”. Em 1625, antes da Procissão de Passos, a Câmara Municipal determinava que cada morador mandasse seu escravo com sua enxada carpir o adro da igreja e a praça da vila.
As tarefas de limpar, destinar resíduos, buscar água, eram consideradas tarefas aviltantes desde a Antiguidade e desempenhadas pelas classes mais baixas ou pelos escravos. Até meados do século XIX o lixo de São Paulo era depositado nas imediações da vila em buracos, ribanceiras e becos, chamados com nomes pejorativos, como “Beco do Mosquito”, “Beco da Cachaça”, “Beco do Inferno” e “Beco Sujo” (Miziara, 2008). Com o aparecimento das epidemias, estes locais passaram a ser vistos como causa de insalubridade pelo poder público e pelos higienistas. O foco, no entanto, não eram os insetos ou ratos que habitavam estes locais; eram os ares, os miasmas. A razão é que nesta época ainda se acreditava – mesmo a maior parte dos cientistas – que as doenças eram causadas pelos “maus ares”, exalados destes locais.
No início da década de 1870, a cidade de São Paulo havia se transformado em centro de atividades comerciais e local de residência da burguesia cafeeira em formação. O povoado passa então por sua primeira revolução urbanística. Constroem-se avenidas; áreas de lazer como o Largo dos Curros (posteriormente Praça da República), a Praça da Sé e o Jardim da Luz foram abertas ao público. As ruas principais recebem calçamento de paralelepípedos, instalam-se os bondes puxados por burros e inaugura-se a iluminação pública a gás. Escreve Roberto Pompeu de Toledo em sua obra A capital da solidão – Uma história de São Paulo das origens a 1900:
As obras de João Teodoro (grande empreendedor à época) foram múltiplas e obedeceram a dois propósitos fundamentais: 1) criar condições para acelerar a expansão da cidade além do núcleo central; e 2) tanto quanto possível, embelezá-la e modernizá-la.” (Toledo, 2003, p. 370).
A modernização da cidade institui coleta regular de lixo feita por carroças e estabelece várias leis ligadas à saúde pública, proibindo a queima de resíduos em quintais e nas vias públicas. Eliminam-se as várzeas onde era depositado o lixo da cidade, sendo este destinado agora para locais específicos. Em 1893 a cidade de São Paulo assina o primeiro contrato de coleta e incineração de lixo, varrição de ruas, limpeza de bueiros e bocas de lobo, celebrado entre a administração municipal e uma empresa particular (parece ter havido um prestador de serviços anterior em 1869, sobre o qual existem poucas informações). No ano seguinte, a Província de São Paulo elabora seu primeiro Código Sanitário, regulando procedimentos de higiene e saúde pública.
Bibliografia:
History of waste management Acesso em 14/12/2009.
History of waste and recycling information sheet < disponível em http://www.wasteonline.org.uk/resources/InformationSheets/HistoryofWaste.htm> Acesso em 14/12/2009.
MIZIARA, Rosana. Por uma história do lixo. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. Disponível em < http://interfacehs.sp.senac.br/images/artigos/109_pdf:pdf> Acesso em 14/02/10.
RUSCHEL, Rogério R.; ROSE, Ricardo E. A caminho do desenvolvimento sustentado – A memória dos primeiros 5 anos do Prêmio Ambiental von Martius. São Paulo. Câmara Brasil-Alemanha: 2005, 235 p.
TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão – Uma história de São Paulo das origens a 1900. Rio de Janeiro. Editora Objetiva: 2003, 558 p.
(imagens: Alexander Rodchenko)

3 comments:

SANTÉ Sweet Art disse...

muito bom!

Jonas disse...

cara, muito bom.

Jonas disse...

Quais são os dados para citação em trabalho acadêmico?

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