Fome, agricultura e mais fome

sábado, 26 de setembro de 2020

"O que chamamos de liberdade é a irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural."   -   Jean Paul Sartre   -   Crítica da razão dialética 


Robert Malthus (1766-1834) foi economista, pastor e professor britânico, considerado o pai da moderna demografia. Formulou a teoria de que populações humanas crescem em progressão geométrica, enquanto que os meios de subsistência só poderiam em crescer em progressão aritmética. Estes princípios teóricos influenciaram Charles Darwin (1809-1882) na formulação de sua teoria da evolução das espécies, além de economistas como David Ricardo (1772-1823). A escassez de meios sempre foi uma das maiores preocupações do homem, desde sua origem, e é o fundamento de toda a atividade econômica. Obter recursos para sobreviver; desde a organização de uma caça na pré-história, a preparação de campos para a plantação do trigo no Antigo Egito, passando pela construção de silos de armazenagem na França medieval, até o planejamento e a operação das modernas cadeias de produção e distribuição. O homem sempre teve que conviver e tentar superar a escassez de recursos: alimento e abrigo.

Sob certo ponto de vista, todas as principais criações da espécie humana – a agricultura, o Estado, a religião, a tecnologia, a cultura – foram estimuladas pela necessidade de sobrevivência em um mundo no qual os recursos básicos, principalmente o alimento, são limitados. Tribos, Estados e impérios guerrearam por mais território, mais riquezas, mais poder e, além de tudo, por mais comida. A história humana é a narrativa dos seres humanos tentando saciar sua fome. Milhares de gerações pré-humana e humanas, passaram grande parte de suas curtas vidas sem alimentação suficiente, desde a mais tenra idade até morrem, quase todos com menos de 35 anos. As escavações arqueológicas em todas as regiões do globo dão conta disso; malformação de dentes e ossos foram comuns entre nossos antepassados. É difícil imaginar este quadro para nós, que vivemos em sociedades desenvolvidas, onde a maioria não passa mais fome e tem uma vida relativamente longa.

Basta consultar o Google e pesquisar na Wikipédia fomes em massa, (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_fomes_em_massa) para encontrar uma lista de mais de 170 ocorrências de períodos de fome desde o século V a.C. até nossos dias. Vale ressaltar que esta relação de eventos se refere apenas aos episódios conhecidos; imagine-se as fomes periódicas ocorridas desde a Antiguidade na já naquela época populosas China e Índia, ou entre grupos humanos nas Américas, na África e na Austrália. A fome pela escassez de caça, provocada pelas mudanças climáticas ocorridas no final do período glacial do Pleistoceno, foi a principal razão pela qual nossos antepassados passaram a praticar a agricultura, há cerca de 10 mil anos. Da mesma forma, alterações do clima, como períodos prolongados de chuva ou seca e invernos mais longos, destruíram colheitas e sementes, provocando falta de alimentos. O mais conhecido exemplo de um tal tipo de desastre foi a Grande Fome de 1315-1317, na Europa. Excesso de chuvas e temperaturas baixas durante a primavera e o verão do ano de 1315, fizeram com que as sementes não germinassem. A falta de alimento para as populações e para os animais, deu início a uma cadeia de acontecimentos: fome, doenças, crimes, mortandade e até casos de canibalismo, fizeram com que 10% a 25% da população de muitas cidade e vilas perecessem.

A fome sempre foi motivo de preocupação dos governantes desde a Antiguidade, mas foi com a Revolução Industrial que o problema se tornou mais premente para os Estados. As fábricas atraíram parte da população rural para as cidades, diminuindo a mão de obra na agricultura. Ao mesmo tempo, a indústria química passava a desenvolver os primeiros fertilizantes para o solo, com base nas pesquisas de Justus von Liebig (1803-1873), um dos iniciadores da química orgânica, que em 1840 publicou A química orgânica em sua aplicação à química agrícola e à fisiologia. A partir desse período a atividade agrícola poderia contar com o apoio efetivo da ciência, sem depender somente das técnicas desenvolvidas ao longo de milênios de experiência, mas ainda pouco eficientes. Assim, no século XIX e XX a agricultura começa a dispor de produtos químicos e máquinas, que aumentam em muito a produtividade. Nos anos 1960 e 1970 a biotecnologia começa a desenvolver sementes híbridas e transgênicas, mais resistentes às pragas e às intempéries, permitindo colheitas e lucros ainda maiores. No entanto, apesar de todos estes avanços, a problema mundial da fome ainda não estava eliminado.

O Clube de Roma, é uma associação de cientistas, acadêmicos, políticos, estadistas e empresários que vêm se reunindo desde 1968, para discutir assuntos relacionados com a economia internacional, com ênfase na questão ambiental e no desenvolvimento sustentável. Com relação à fome, o grande mérito dessa instituição foi relacionar a questão ambiental – o uso dos recursos naturais – com o tema da agricultura. Em 1972 o Clube de Roma contratou uma equipe do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), chefiada por Donella e Denis Meadows, que elaborou um relatório, publicado sob o título de Os limites do crescimento. Tratando de assuntos como poluição, crescimento populacional, energia, saneamento e saúde, o relatório concluía que o planeta não suportaria o ritmo de crescimento da população, mesmo considerando os avanços tecnológicos futuros. Devido aos impactos ambientais provocados pela tecnologia (exaustão dos solos, uso de agroquímicos, destruição de áreas naturais remanescentes) poderia cair a oferta mundial de alimentos, ao passo que a população continuaria a crescer, o que provocaria crises de carestia de víveres.

A situação apontada pelo relatório Os limites do crescimento parece não ter se confirmado – pelo menos até agora – no que se refere à produção de alimentos, graças à criação de uma técnica que reúne um conjunto de tecnologias, para aumentar a produtividade da agricultura. Chamada de Revolução Verde, o método foi desenvolvido pelo engenheiro agrônomo norte-americano Norman Borlaug (1914-2009), introduzido a partir da década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa, disseminando-se pelo mundo nos anos 1970. A técnica se baseia no uso intensivo de sementes alteradas, insumos industriais (agrotóxicos e fertilizantes), larga mecanização e emprego intensivo de tecnologia. A Revolução Verde contribuiu em grande parte para aumentar a produção agrícola de países com grande população como a China e a Índia, que sem este tipo de agricultura enfrentariam constantes crises de desabastecimento alimentar. Por outro lado, além de aumentar a produção agrícola, a Revolução Verde também ajudou a transformar países como os Estados Unidos, o Brasil e a Argentina em grandes fornecedores de commodities agrícolas no mercado mundial. Criada em 1973, durante o período de introdução da Revolução Verde no Brasil, a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária é um exemplo do sucesso desta tecnologia. Desenvolvendo pesquisas e produtos voltados para a atividade agrícola e pecuária, a empresa tornou-se o maior centro de know-how nesta área para regiões tropicais em todo o mundo. Grande parte do sucesso obtido pelo agronegócio a partir dos anos 1980, deve-se às atividades cientificas desenvolvidas por esta instituição.

Se, por um lado, o tecnologia da Revolução Verde trouxe maiores colheitas, por outro lado também provocou impactos. A produção agrícola baseada em grandes áreas, o sistema plantation, tem forte impacto sobre o meio ambiente, devido ao uso extensivo de terras e intensivo de fertilizantes e agroquímicos, diminuindo a biodiversidade original do solo, ao mesmo tempo em que pode contaminar os recursos hídricos com produtos químicos. Os principais produtos produzidos atualmente pelo agronegócio brasileiro são: soja, cana de açúcar, café, milho, algodão, laranja, mandioca, arroz, cacau e celulose, destinados em grande parte à exportação. Por outro lado, 70% dos alimentos consumidos no mercado interno são produzidos pelas pequenas propriedades agrícolas, cujo nível de capacitação, capitalização, mecanização e uso de tecnologias de ponta é relativamente baixo, se comparadas às cerca de 400 mil empresas do agronegócio moderno.   

Apesar da grande expansão da agricultura a partir dos anos 1970, acompanhando o crescimento populacional, a fome não foi erradicada no mundo. Segundo dados disponíveis na ONU, em 2019 a fome atingia 820 milhões de pessoas em todo o planeta, mas principalmente na África. Países que já sofriam de insegurança alimentar antes do surgimento da pandemia, causada por conflitos armados, secas prolongadas e depressão econômica, se tornaram ainda mais vulneráveis com o surto da doença. Burkina Fasso, Nigéria, Somália, Sudão, República Centro-Africana, entre outros, já se encontram em graves crises alimentares, fator que provoca ainda mais conflitos e movimentos de refugiados para outros países. Além dos aspectos ambientais e político-econômicos, muitos países também não dispõem de suficientes recursos financeiros para adquirir alimentos no mercado internacional, cujos preços, principalmente dos grãos e leguminosas, encontram-se ainda mais inflacionados desde o surgimento da pandemia. Segundo um estudo da consultoria McKinsey, a alimentação do mundo é baseada principalmente em quatro grãos: arroz, trigo, milho e soja, que constituem quase a metade das calorias de uma dieta global típica. Por outro lado, aproximadamente 60% da produção mundial de alimentação, se dá em apenas cinco países: Argentina, Brasil, China, Estados Unidos e Índia.

 No Brasil a fome sempre foi endêmica, tendo diminuído com o desenvolvimento de uma prática agrícola mais moderna, notadamente a partir dos anos 1970. Mesmo assim, sempre houve bolsões de fome, principalmente na região Nordeste, associados à pobreza. O programa Fome Zero foi criado em 2003, durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, substituindo e ampliando o programa Comunidade Solidária, implantado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para atender cerca de 44 milhões de pessoas ameaçadas pela fome à época, o programa foi desenvolvido com um conjunto de mais de 30 iniciativas complementares, com o objetivo de atacar as causas da fome e da insegurança alimentar. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO), a insegurança alimentar divide-se em três categorias: a) a insegurança alimentar leve, quando existe preocupação com acesso à comida e queda na qualidade dos alimentos; b) a insegurança moderada, quando há uma redução na quantidade de alimentos e quebra nos padrões de nutrição entre adultos; e c) grave, com redução quantitativa de alimentos também entre crianças. A fome torna-se uma experiência concreta no lar.

No Brasil, entre 2013 e 2018 a insegurança alimentar nos domicílios cresceu em 62,4%, atingindo 10,3 milhões de pessoas. A situação é pior no Nordeste e na região Norte, onde respectivamente apenas 49,7% e 43% dos domicílios tiveram acesso pleno e regular aos alimentos. Nas outras regiões o acesso regular a alimentos chega a 79,3% (Sul); 68,8% (Sudeste) e 64,8% (Centro-Oeste). Desde 2014 o Brasil havia deixado de constar na relação do Mapa da Fome – países que têm mais de 5% da população ingerindo menos caloria do que o recomendável. Em 2019, no entanto, a FAO alertou o governo brasileiro de que o país poderia vir a reintegrar esta lista. Ainda em relação a isto, dados do IBGE informam que cresceu em três milhões o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave nos últimos cinco anos e o percentual dos brasileiros com alimentação satisfatória, atingiu o patamar mínimo em 15 anos. A estatística inclui apenas os moradores de domicílios permanentes, excluídas as pessoas em situação de rua.

O Brasil é o segundo maior produtor mundial de alimentos, depois dos Estados Unidos. No entanto, paradoxalmente, enfrentamos uma alta nos preços dos produtos agrícolas de maior consumo, como o arroz (25,55% em 12 meses), o feijão (48,37%), óleo de soja (23,51%) o leite (18,79%), a carne, ovos e vários outros produtos constantes da cesta básica de alimentação. A alta dos preços, segundo especialistas, deve continuar pelo menos para alguns produtos, o que prejudicará ainda mais grande parte da população, que continua sem recursos financeiros como consequência da pandemia – situação que será agravada com o término do auxílio emergencial a partir de 2021.

Com o recebimento do auxílio emergencial da pandemia, muitas pessoas tiveram mais dinheiro para comprar alimentos, do que teriam em situação normal. Só isso nos dá uma ideia do grau de pobreza e até de miserabilidade em que vive parcela considerável dos brasileiros – cerca de 30% da população, aproximadamente 62 milhões de pessoas. Alegam alguns economistas que com os recursos do auxílio emergencial os pobres aumentaram o consumo de alimentos, o que provocou o aumento de preços pelo comerciantes. A maior parte dos especialistas, no entanto, dá como origem do aumento dos preços dos alimentos exatamente a falta deles, provocada pelo crescimento de suas exportações, tornadas mais vantajosas com a alta do dólar. Assim, enquanto desde o mês de junho o setor do agronegócio aumentava exponencialmente suas exportações, principalmente de arroz, o governo federal já não dispunha de estoques reguladores de alimentos básicos. A iniciativa de abolir os estoques reguladores, comuns na maioria dos países, foi tomada pelo governo do presidente Temer, e assim permaneceu até agora. Desta forma – mais um paradoxo destes tempos tão estranhos – um dos maiores países produtores e exportadores de arroz terá que importar arroz para abastecer sua população. No entanto, este arroz importado chegará ao consumidor a um preço mais alto do que vinha se pagando pelo grão produzido internamente. Não se pode culpar os produtores e comerciantes por quererem ganhar mais, aproveitando as condições favoráveis, mesmo que à custa dos consumidores internos. O que se espera, todavia, é que o governo volte a retomar a inteligente e previdente prática de formar estoques reguladores de certos produtos de primeira necessidade.  

 

(Imagens: pinturas de Hariton Pushwagner)

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