Religião, evangélicos e política

sábado, 5 de setembro de 2020

 
"A religião é a consciência do infinito; ela é portanto e só pode ser a consciência de que o homem toma de sua própria essência, não de sua essência finita e limitada, mas de sua essência infinita."   -   Ludwig Feuerbach   -   A essência do cristianismo

De uma maneira geral, a religião é um tema superado nas sociedades avançadas. As igrejas são cada vez menos frequentadas, porque não oferecem mais as respostas que as pessoas procuram. Nas sociedades europeias, por exemplo, seu vizinho pouco se importa no que você acredita ou não. Este tipo de questionamento não faz mais sentido, não importa mais. Como associar crenças, padrões de conduta e visões de mundo, surgidas há mais de dois mil anos em uma civilização agrícola e culturalmente periférica, às preocupações e à visão de mundo influenciada pela tecnologia, pelo individualismo e um relativo bem estar social?

O “retorno da religião”, apontado como novo fenômeno social e cultural por alguns intelectuais nos últimos trinta anos, foi uma ocorrência localizada. O crescimento da prática religiosa concentrou-se principalmente nas sociedades com menor acesso à educação formal, onde condições aceitáveis de vida não são a regra e as liberdades individuais são limitadas. São sociedades sem perspectivas para a maior parte dos indivíduos, seja no cotidiano como no futuro, com Estados autoritários e corruptos, dominados por elites culturalmente atrasadas; fatores que levam parte da população a procurar algum tipo de alívio e ajuda na religião, despendendo considerável tempo e esforço para isso.    

Na visão de Marx a religião, além de prática para aliviar as mazelas da vida, também era um protesto contra uma situação injusta. Escreve o filósofo na Crítica da Filosofia de Hegel: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.” 

A teologia da libertação foi, entre os anos 1960 e 1980, uma forte corrente de pensamento na teologia católica, principalmente na América Latina. Caracterizava-se por uma posição extremamente crítica em relação às adversas condições econômicas, sociais e políticas na região, dominada então por regimes autoritários. Durante este período também os religiosos foram censurados, perseguidos e assassinados pelas forças de repressão. No entanto, com a chegada de João Paulo II ao papado, a teologia da libertação foi proscrita da doutrina da Igreja, sendo gradualmente substituída por linhas doutrinárias e religiosos mais conservadores.

Em pleno período da Guerra Fria, a teologia da libertação, por sua forte crítica às injustas relações sociais e econômicas, foi incorretamente associada à expansão do socialismo; seja pelos regimes autoritários como pelas agências do governo dos Estados Unidos. Neste período, as igrejas evangélicas, atuando na América Latina desde o início do século XX, cresciam lentamente, principalmente nas periferias das grandes cidades. Para fazer frente à teologia da libertação, governos latino-americanos procuraram facilitar a expansão das igrejas evangélicas neo-pentecostais, pois estas não desaprovavam os regimes autoritários e eram politicamente neutras em relação à situação social. Credos evangélicos, com ligações nos Estados Unidos, chegaram a receber apoio financeiro para expandirem e disseminarem a doutrina que, na prática da evangelização, se contraporia à teologia da libertação: a teologia da prosperidade. Há, no entanto, igrejas evangélicas pentecostais que não enfatizam a teologia da prosperidade. 

No texto As origens norte-americanas da teologia da prosperidade, e sua influência no contexto brasileiro, publicado no site da Faculdade Batista do Paraná (FABAPA) (https://fabapar.com.br/blog/as-origens-norte-americanas-da-teologia-da-prosperidade-seus-ensinos-e-sua-influencia-no-contexto-brasileiro/), os especialistas Me. Gabriel Maurílio e Dra. Marivete Zanoni Kunz, apresentam uma explicação da teologia da prosperidade, da qual selecionamos o seguinte trecho:

“Esta Teologia traz uma nova interpretação, que troca as boas novas por solução de problemas. Também ensina que a marca do cristão verdadeiro consiste em ter muita fé, ser bem-sucedido, ter boa saúde física, emocional e espiritual, isto inclui a prosperidade financeira, mas, se o cristão é pobre ou está doente, são resultados de pecado ou falta de fé. Neste aspecto, a Teologia da Prosperidade tem atraído grande número de pessoas que passam por estas dificuldades, mas, para receber estas bênçãos, inclusive a financeira, o cristão tem que ofertar na igreja para recebê-las, em forma de barganha.” (Maurílio e Kunz)

Caiu o Muro, desapareceu a competição entre o bloco capitalista e o comunista em todo o planeta, governos se sucederam no Brasil, mas as condições sociais e econômicas do país não mudaram em suas bases. Como escreveu Tomasi di Lampedusa em seu clássico romance O Leopardo “Algo deve mudar para que tudo continue como está.” E foi o que ocorreu – ou não ocorreu. A situação dos pobres e miseráveis foi apenas atenuada ao longo dos últimos vinte e poucos anos, mas não mudou em suas bases. A função de alívio e protesto da religião, continua justificada em nossa sociedade.

O Brasil sempre foi um país de hegemônica tradição católica, pelo menos até há alguns anos. No entanto, ao longo dos últimos quarenta anos, os evangélicos tornaram-se o grupo religioso que vem apresentando o mais rápido crescimento. Em 2010 já perfaziam 22,2% da população, cerca de 42,3 milhões de pessoas. Em 2017 eram 27% da população e hoje este percentual deve estar em torno de 30% – cerca de 60 milhões de pessoas. A maior parte dos fiéis destas correntes protestantes, assim como a dos católicos, é formada por pessoas de baixa renda (cerca de 60%) e por representantes da classe média.

Recentemente, os grupos evangélicos tiveram um grande peso na eleição do presidente Bolsonaro, segundo dados levantados pelo jornal Folha de São Paulo. É preciso notar, no entanto, que em eleições anteriores os evangélicos também votaram maciçamente nos candidatos “preferidos”, como Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff. Bolsonaro agradou especialmente aos evangélicos e a seus pastores por ter incorporado práticas da religião, como o batismo a que se submeteu, a referência a Deus em seu slogan de campanha (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), a defesa dos “valores da família brasileira”, o conservadorismo e o anti-intelectualismo. Eleito, retribuiu os votos indicando pastores evangélicos para cargos ministeriais e mantendo estreito relacionamento com a comunidade evangélica. 

Sendo assim, os grupos evangélicos têm e terão, cada vez mais, forte influência no governo – pelo menos neste governo. É bem provável que a política e certas práticas sociais sejam influenciadas pela visão de mundo evangélica, que passou a ter certa ascendência na vida pública do país, através da política e da mídia. Se isto é uma vantagem para os evangélicos, significando poder e hegemonia, também transformar estes grupos sociais – e as instituições e personalidades a eles ligados – em atores constantemente observados, analisados e avaliados pelo resto da sociedade, através dos meios de comunicação e das mídias sociais.

A exposição na mídia que figuras evangélicas passaram a ter – e que este grupo pouco tinha no passado –, já começa a ter consequências. Chamaram a atenção da opinião pública do país os casos recentes de conhecidos ministros de igrejas evangélicas suspeitos de envolvimento em atividades criminosas – caso do pastor Everaldo Dias Pereira, importante nome da igreja Assembleia de Deus e presidente do Partido Social Cristão (PSC), acusado de corrupção e lavagem de dinheiro, e da pastora Flordelis dos Santos de Souza, pastora da igreja do Ministério Flordelis (rebatizado para Cidade de Fogo) e deputada federal pelo Partido Social Democrático (PSD), acusada do assassinato de seu marido, também pastor.  

Só o tempo poderá dizer como será a atuação dos grupos evangélicos na política, e de que modo influenciarão a história do país. Por enquanto estão instalados em ministérios e outros importantes cargos no Executivo, preenchem 91 cadeiras no Legislativo e futuramente poderão ocupar posições no Judiciário (Bolsonaro não deve ter abandonado sua ideia de empossar um ministro “terrivelmente evangélico” no STF). Todos estes, elas e eles, ocupando cargos de evidência na administração, precisam ter em mente de que governam, legislam e julgam para uma República laica, sem religião. Uma República onde deve imperar a vontade da maioria, sem que as aspirações justas de minorias sejam desrespeitadas. Diferente dos planos da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Silva, que recentemente declarou em entrevista à Deutsche Welle de que "É o momento de a igreja ocupar a nação". Uma República cujo principal objetivo deve ser o de promover a justiça econômica e social, propiciando o desenvolvimento das potencialidades de todas as pessoas, todos os grupos sociais, independente de religião, cor ou sexo, através de igual acesso à educação, cultura, saúde e vida digna. É só desta maneira que a sociedade brasileira poderá atingir um nível aceitável de humanismo e civilização.    


(Imagens: pinturas de Georg Schrimpf)


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