O que nos diz um quadro

sábado, 11 de fevereiro de 2023

"Pelo que tenho visto da intuição, ela me parece ser o produto de um tipo de imparcialidade intelectual. Infelizmente, porém, as pessoas raramente são imparciais no que concerne às coisas supremas, aos grande problemas da ciência e da vida."   -   Sigmund Freud   -   Além do principio de prazer   


Recentemente, fazendo uma pesquisa na internet sobre pintores brasileiros dos séculos XIX e XX, me deparei com alguns quadros do pintor primitivista Emygdio Emiliano de Souza (1867-1949), nascido na histórica cidade de Itanhaém, no litoral Sul de São Paulo. O artista, que começou como autodidata, foi influenciado por seu contemporâneo Benedito Calixto (1853-1927), outro pintor itanhaense que se tornou famoso, retratando paisagens e cenas da história brasileira. Alfredo Volpi (1896-1988) pintor ítalo-brasileiro da segunda geração do modernismo, famoso por suas pinturas de bandeirinhas e casarios, frequentador de Itanhaém nos anos 1940, tornou-se amigo e admirador das obras de Emygdio. Este, para sobreviver, exerceu diversas profissões ao longo de sua vida; professor de escola primária, funcionário público e chefe da estação de trem da antiga Estrada de Ferro Sorocabana em Peruíbe, hoje cidade de Peruíbe, então subdistrito do município de Itanhaém. Artista versátil e criativo, Emygdio, além de pintor, também foi escritor, folclorista, autor de peças teatrais e compositor.

Em toda a produção do pintor, principalmente para quem conhece a região, chamam atenção os quadros retratando aspectos da cidade de Itanhaém, entre os anos 1920 e 1940, quando a cidade ainda era pequena e recebia poucos turistas – que chegavam à cidade pelos trens da Sorocabana, ferrovia desativada nos anos 1990. No entanto, o quadro que mais me interessou foi uma pintura que Emygdio executou ainda jovem, aos 19 anos, retratando a praça central da então freguesia de Peruíbe – o artista escreve “Peruhybe”, – datando de 1886. A obra retrata a praça matriz e sua pequena igreja com as casas do entorno. Desde este período, a igreja foi ampliada nos anos 1970, a praça sofreu várias remodelações (cerca de três entre os anos 1960 e 2000) e as casas do entorno foram substituídas por outras e por um pequeno edifício.

A cena do quadro retrata a festa junina de São João Batista, padroeiro de Peruíbe – a povoação, originariamente um aldeamento indígena do início do século XVI, recebeu o nome de São João Batista de Peruíbe, dado pelos jesuítas. Interessante olharmos a cópia do quadro (disponível na internet em https://www.guiadasartes.com.br/emidio-de-souza/quadros-do) e imaginar que a cena retrata uma festa de São João, que efetivamente ocorreu no dia 24 de junho de 1886, uma quinta-feira (fui verificar!), possivelmente ao final da tarde. Deve ter sido um dia com temperatura mais baixa do que a média, pois as pessoas estão vestindo roupas mais pesadas, incomuns para uma cidade litorânea (ou talvez roupas mais formais para um dia de festejos). Pode-se notar também a presença de personagens com instrumentos musicais, possivelmente uma pequena banda de música, e ao fundo outros indivíduos soltando fogos.

O jovem Emygdio provavelmente pegou seus apetrechos de pintura, colocou tudo em um cavalo ou numa charrete, e partiu de Itanhaém pela manhã, em direção sul, para o povoado de Peruíbe. A distância é de 25 quilômetros; percurso que deve ter sido feito pela praia em três horas a cavalo trotando. A ferrovia só chegaria 28 anos mais tarde, em 1914, e a rodovia somente na década de 1960, praticamente 80 anos depois daquela festa de São João retratada no quadro – coincidentemente o automóvel seria inventado naquele mesmo ano de 1886, na Alemanha. Hoje tudo para nós é história, mas nossos antepassados deste período nem imaginavam o que ocorria em outras partes do mundo.  

Numa perspectiva histórica, a situação do país e da região onde foi pintado o quadro é bastante distinta da atual. Em 1886 o Brasil ainda era uma monarquia escravista, cuja principal atividade econômica estava na agricultura do café, dominada por latifundiários; grupo social que detinha a hegemonia sobre a economia e a política do país. Antevendo a iminente abolição do sistema escravista, esta elite se organizava para substituir a mão de obra escravizada pela dos imigrantes europeus – notadamente italianos e espanhóis. Em 1888 seria abolida a escravidão e em 1889 proclamada a República; movimentos que representavam o surgimento de novos grupos sociais no quadro histórico do país. O país, apesar de seu imenso potencial e algumas iniciativas, como a do Barão de Mauá (Irineu Evangelista de Souza, 1831-1889), praticamente não tinha qualquer indústria.

Em 1886 a vila de Peruíbe era uma freguesia, um subdistrito do município de Itanhaém, que ao norte fazia divisa com a também histórica cidade de São Vicente, e ao sul com a também antiga Iguape, fundada em 1538. No entanto, em um mapa da antiga província de São Paulo, elaborado pela “Sociedade Promotora de Immigração de São Paulo” em 1886, não aparece qualquer menção ao povoado de Peruíbe. (Disponível em:

https://www.novomilenio.inf.br/santos/mapa268g.htm).

Segundo dados históricos, antes da chegada dos portugueses à região por volta de 1535, já existiam ali aldeamentos indígenas. Peruíbe, em língua tupi-guarani quer dizer “rio do tubarão”, provavelmente devido à grande quantidade dessa espécie de peixe cartilaginoso encontrável nas águas marinhas desta região. São João Batista de Peruíbe (ou Peruhybe) começou como um ou vários aldeamento de indígenas do ramo tupiniquim, estabelecidos pelos padres jesuítas na terceira década do século XVI. Nos anos seguintes os religiosos, entre outros o português Leonardo Nunes (apelidado pelos índios de Abarêbebê, o padre voador) e o canariense José de Anchieta, visitaram regularmente a região, mantendo a organização e a prática religiosa nas aldeias. Existem indícios de que por esta época foi fundada uma ermida, em local hoje situado a aproximadamente sete quilômetros do centro da cidade. Na mesma área, no século XVIII, a ordem franciscana fundou uma igreja que em poucas décadas foi abandonada e da qual atualmente restam apenas ruínas, conhecidas como Ruínas do Abarêbebê. Estas são tidas erroneamente, por alguns, como datando da ocupação original, no século XVI. Depois, no século XIX, formou-se uma pequena aldeia de pescadores onde hoje está localizado o centro da cidade e a praça da matriz, retratada pelo pintor Emygdio Emiliano de Souza em seu quadro. Este núcleo urbano recente é que daria origem à atual cidade de Peruíbe.

Em 1914 chega a Peruíbe a linha férrea da Estrada de Ferro Sorocabana, ligando São Paulo – através de percurso pela então despovoada zona sul da cidade (atualmente os bairros de Santo Amaro, Cidade Dutra, Parelheiros, Marsillac) e passando por São Vicente e Itanhaém – a Juquiá, no Vale do Ribeira. A ferrovia trouxe certo progresso para a vila de Peruíbe, possibilitando acesso mais fácil à capital, apesar das oito horas de percurso para cobrir os cerca de 170 quilômetros, que então separavam o povoado da capital por via férrea (93 quilômetros em linha reta). O trem possibilitou o acesso a produtos antes indisponíveis, não tanto pela distância, mas muito mais pelo terreno acidentado; os rios, a floresta e a Serra do Mar. Fato surpreendente, aliás, mas explicável, é que esta região, relativamente perto de São Paulo, tenha ficado isolada por tanto tempo.

Em 1959 Peruíbe tornou-se município autônomo, emancipando-se de Itanhaém. No início dos anos 1960, com a expansão da rede rodoviária por todo o país promovida pelo governo Kubitschek, dá-se início à construção da estrada de acesso à cidade através de Itanhaém e à via de acesso à rodovia Regis Bittencourt, através do Vale do Ribeira. O acesso facilitou a vinda de turistas e novos moradores, fazendo com que da pequena vila de pouco mais de quatro mil habitantes nos anos 1920 e cerca de 15 mil moradores nos anos 1960, surgisse a cidade com quase 70 mil habitantes em 2022.

O passado da cidade, que pesquisado ainda poderia revelar aspectos interessantes e pouco conhecidos da história local e do país, desperta pouco interesse da maior parte de seus moradores e administradores.


(Imagens: pinturas de Emygdio Emiliano de Souza, retratando paisagens de Itanhaém)

1 comments:

Mari Polachini - MoCAN disse...

Excelente e surpreendente trabalho de pesquisa, apresentado em um texto agradável e permeado de poesia, que toca a alma de quem, como eu, tem uma relação de mais de 5 décadas com essa cidade que cresce desordenadamente, soterrando nas fundações dos recentes edifícios de 15 andares a parte mais querida de sua história.
Gratidão, Ricardo, por nos propiciar esse momento de embevecimento ao resgatar uma memória que precisa ser acessada por quem ama essa cidade.

Postar um comentário