Leituras diárias

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

 



“Qual será nessas novas condições a obra por excelência dos homens de boa vontade? Substituir as alucinações por observações precisas, substituir as ilusões do paraíso que prometiam aos famélicos pelas realidades de uma vida de justiça social, de bem-estar, de trabalho harmonioso; encontrar para os fiéis da religião humanitária uma felicidade mais substancial e mais moral do que aquela com a qual os cristãos contentam-se atualmente.

Aquilo de que estes necessitavam era não ter o penoso trabalho de pensar por si mesmos e buscar em sua própria consciência o móbile de suas ações; não tendo mais fetiche visível como nossos ancestrais selvagens, esforçam-se para possuir um fetiche secreto que trate de suas feridas de amor-próprio, que os console de suas tristezas, que lhes torne as horas de enfermidade menos longas e assegure-lhes inclusive uma vida imortal, isenta de toda preocupação. Mas tudo isso para eles pessoalmente. Sua religião não leva em consideração os infelizes que continuam perigosamente a dura batalha da vida; assim como os espectadores da tempestade dos quais fala Lucrécio, é-lhes doce ver, da praia, os gestos dos náufragos lutando contra as ondas. Eles podem reler nos Evangelhos essa vil parábola de Lázaro, “deitado no seio de Abraão”, e recusando-se a molhar a ponta de seu dedo na água para refrescar a língua dos maus ricos (Lucas XVI).

Nosso ideal de felicidade não é em absoluto esse egoísmo cristão do homem que se salva vendo perecer seu semelhante e que recusa uma gota de água a seu inimigo. Nós, anarquistas, que trabalhamos pela emancipação completa do indivíduo, colaboramos por isso mesmo para a liberdade de todos os outros, inclusive aquela do mau rico, quando o tivermos aliviado de suas riquezas, e tivermos lhe assegurado o benefício solidário de cada um de nossos esforços.

Nossa vitória pessoal não se concebe de modo algum sem que ela se torne, ao mesmo tempo, uma vitória coletiva; nossa busca da felicidade não pode imaginar-se de outro modo senão na felicidade de todos: a sociedade anarquista não é um corpo de privilegiados, mas uma comunidade de iguais, e será para todos uma felicidade muito grande, da qual não temos hoje nenhuma ideia, viver num mundo em que não veremos crianças surradas por suas mães recitando o catecismo, sem famélicos pedindo uma moeda, sem prostitutas entregando-se para se alimentar, sem homens válidos fazendo-se soldados ou mesmo policiais, porque não têm outros meios para ganhar suas vidas.

Reconciliados porque os interesses de dinheiro, de casta, de posição, não farão deles inimigos natos uns dos outros, os homens poderão estudar juntos, tomar parte, segundo suas afinidades pessoais, das obras coletivas da transformação planetária, da redação do grande livro dos conhecimentos humanos, em resumo, viver uma vida livre, cada vez mais ampla, poderosamente consciente e fraternal, escapando assim das alucinações, da religiosidade e da Igreja.” (Reclus, págs. 44-46)

 

 

Elisée Reclus, Anarquia pela educação

 


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