Praia, saneamento e privatização

sábado, 14 de janeiro de 2023


"As multidões não são fanáticas, mas impulsivas. O fanatismo exige primeiro um pensamento persistente e profundo amor pelas ideias."   -   Nicolás Gómez Dávila   -   Notas - Pensamentos Prematuros


“Houve uma intensa campanha contra as estatais nos meios de comunicação, verdadeira ‘lavagem cerebral’ da população para facilitar as privatizações. Entre os principais argumentos, apareceu sempre a promessa de que elas trariam preços mais baixos para o consumidor, ‘graças à maior eficiência das empresas privadas’. A promessa era pura enganação.” 

Aloysio Biondi, O Brasil privatizado – Um balanço do desmonte do Estado 

 

Todos os anos, durante as festas de final de ano e as sequentes férias de verão, milhões de turistas se deslocam do interior e, principalmente, da região metropolitana de São Paulo, para o litoral do estado. Esperam ter alguns dias de lazer, podendo esquecer os problemas financeiros, a falta de segurança e o custo de vida, entre outros pesares. O veranista, apesar de todas as contrariedades que enfrenta durante o ano é, antes de tudo, um forte e não desiste nunca. Carro abarrotado de coisas – já que o comércio local exagera nos preços nesta época – e algumas horas a mais ou a menos de calor e congestionamento depois, o estafado viajante chega ao seu destino final: a praia. Litoral Norte, Baixada Santista ou litoral Sul; são cerca de 800 quilômetros de praias em 16 municípios; de Ubatuba, até Cananéia, na divisa com o Paraná, numa região totalizando cerca de 2,2 milhões de habitantes. 

Tudo corre às mil maravilhas para o turista, salvo a falta de água em muitos bairros de vários municípios, entre os dias que antecedem e sucedem o Ano Novo. Vez ou outra, pode também ocorrer uma virose, provocada por águas contaminadas. Em final de 2022 o litoral de São Paulo apresentava 12 praias impróprias para o banho, a maioria delas no Litoral Norte. Não por acaso, dados publicados em agosto de 2022 pelo Comitê de Bacias Hidrográficas do Litoral Norte (CBH-LN) informavam que a situação dos quatro municípios da bacia hidrográfica (São Sebastião, Ilhabela, Caraguatatuba e Ubatuba) é preocupante em termos de saneamento. Segundo o comitê, 51% da população da região não dispõe de tratamento de esgoto, principalmente devido a problemas de regularização fundiária. 

A contaminação por vírus, protozoários ou bactérias ocorre frequentemente nas praias, quando estas estão poluídas por esgotos sanitários. Nestes ambientes pode-se contrair cerca de 250 diferentes doenças, transmitidas por águas e alimentos contaminados. O fato ocorre com maior ou menor frequência em todos os municípios do litoral paulista, comprometendo a qualidade dos rios e a balneabilidade das praias. Além da contaminação por esgoto, as praias e rios também são infectados pela poluição difusa por fezes de animais e resíduos sólidos levados pelas chuvas, pelos sistemas inadequados de drenagem e pela poluição trazida por águas pluviais que desaguam diretamente na orla. 

A cidade de Santos, a maior do litoral paulista com quase 440 mil habitantes, dispondo do maior porto da América Latina, é uma exceção a esta regra. O município está colocado em primeiro lugar entre as 20 cidades brasileiras com melhor índice de tratamento de esgoto, tendo 100% de sua água tratada, 99,93% de seu esgoto coletados e 97% tratados. A cidade, porto economicamente importante desde o século XIX com as exportações de café, que vinha principalmente do interior do estado de São Paulo, é modelo de saneamento. Já no início do século XX iniciou investimentos nesta área, baseados em um plano elaborado pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito (1864-1929). A medida saneou a cidade e o entorno, diminuindo ou eliminando várias doenças ligadas à insalubridade comuns à época, como disenteria, febre tifoide, cólera, leptospirose, hepatite, entre outras. Entre 2000 e 2045 a SABESP, a agência de saneamento do estado, deve investir R$ 450 milhões na modernização e ampliação do saneamento da cidade. 

Por outro lado, permanece a pergunta sobre como a SABESP planeja ampliar a coleta, o tratamento de esgoto e, principalmente, o suprimento de água potável no restante da Baixada Santista. O crescimento populacional da região, entre 2019 e 2020, foi superior à média nacional (0,74%) e à do estado de São Paulo (0,64%), alcançando um aumento de 0,84%. Considerando que a cada ano também cresce o número de turistas na região, principalmente nos meses de verão – na média as cidades do litoral chegam a triplicar ou quadriplicar suas populações nesta época –, como a região será abastecida com água potável de qualidade em 15, 30 ou 40 anos? De onde virá essa água? 

Por sua vez, o Plano Estadual de Saneamento Básico de São Paulo (PESB/SP) – Relatório de Formulação de Diretrizes, Prioridades e Estratégias 2022 (https://smastr16.blob.core.windows.net/pesbsp/sites/258/2022/07/ri08a-h0r-rf-001-0-cp-5.pdf), estabelece uma diminuição no consumo de água na região, entre 2023 e 2050 (tabela à pág. 79), baseada principalmente na “redução de vazamentos na linha de distribuição e na conscientização da população” (medidas citadas em trecho anterior do relatório). A providência parece fazer sentido e vai de encontro às ações empreendidas pela maioria das companhias de saneamento em várias partes do mundo. No entanto, é preciso levar em consideração o fato de que o atual governador do estado de São Paulo, Tarcísio de Freitas, influenciado pela ultrapassada ideologia neoliberal, pretende privatizar completamente a companhia estadual de saneamento, a SABESP. 

Nos anos 1980 e 1990 esta era uma tendência mundial: privatizar serviços fornecidos por empresas públicas (eletricidade, gás, telefonia, etc.), entre os quais os de saneamento; o tratamento de água e esgoto doméstico. Empresas privadas, lembremos, podem ser mais ágeis e abertas às mudanças do que empresas públicas em geral, mas têm por objetivo principal a geração de lucros para seus acionistas. Esta é a “cláusula pétrea” de uma empresa privada atuando em uma economia capitalista; como afirmou Milton Friedman, economista da Universidade de Chicago e um dos maiores defensores do neoliberalismo, durante uma entrevista à revista Time: “O único propósito de uma empresa é gerar lucro para seus acionistas.” Nestas condições, será que os acionistas da SABESP teriam interesse em investir altos valores na redução das perdas de água nas tubulações, quando o que eles visam mesmo é o lucro? Perdida ou não, o eventual aumento no custo da distribuição da água é de toda maneira repassado ao consumidor (lembrando que as agências reguladoras brasileiras que deveriam fiscalizar as empresas privadas de setores estratégicos, são praticamente inertes). 

O reverso da moeda mostra uma outra imagem. Várias empresas de saneamento municipais, estaduais ou federais, em vários países, privatizadas pelo poder público, foram novamente estatizadas. Uma reportagem publicada no jornal inglês The Guardian em 2015 (https://www.theguardian.com/global-development/2015/jan/30/water-privatisation-worldwide-failure-lagos-world-bank) informa que: 

um relatório feito pelo Transnational Institute (TNI), a Public Services International Research Unit (Unidade Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos) e o Multinational Observatory (Observatório Multinacional) informa que 180 cidades e comunidades, em 35 países, incluindo Buenos Aires, Johannesburgo, Paris, Accra, Berlim, La Paz, Maputo e Kuala Lumpur, ‘remunicipalizaram’ seus sistemas de tratamento de água na década passada. Mais de 100 das (cidades) ‘retornadas’ estavam nos Estados Unidos e França, 14 na África e 12 na América Latina. Aquelas nos países em desenvolvimento eram cidades maiores do que aquelas em países ricos.” (The Guardian 30/01/2015 – tradução nossa)  

Parece que em todo o mundo já se percebeu que a privatização de serviços públicos – neste caso o saneamento – não costuma dar certo, tendo como consequência a necessidade de sua “desprivatização”. O site americano Food & Water Watch em seu artigo Water Privatization: Facts and Figures (Privatização da Água: Fatos e Números) (https://www.foodandwaterwatch.org/2015/08/02/water-privatization-facts-and-figures/) apresenta dados e números sobre a privatização do setor. São informações pouco citadas aqui no país e raramente divulgados pela grande mídia brasileira – a maior parte dela comprometida com a política privatista. Alguns pontos importantes citados pelo site dizem: 

A privatização pode piorar o serviço. Há ampla evidência de que atrasos na manutenção, desperdício de água, derramamento de esgoto e pior serviço geralmente seguem a privatização. De fato, o baixo desempenho é a principal razão pela qual os governos locais revertem a decisão de privatizar e retomar a operação pública de serviços anteriormente contratados. Leia nosso relatório: Dinheiro pelo ralo: como o controle privado desperdiça recursos públicos.” (Food & Water Watch) 

Os operadores privados podem cortar custos. Quando os operadores privados tentam cortar custos, as práticas que eles empregam podem resultar em pior qualidade do serviço. Eles podem usar materiais de construção de má qualidade, atrasar a manutenção necessária ou reduzir a força de trabalho. Essas estratégias podem prejudicar o atendimento ao cliente e retardar as respostas às emergências.” (Food & Water Watch) 

Com isso, fica a pergunta, se caso a SABESP efetivamente for privatizada, assumindo o modus operandi usual das empresas privatizadas, visando o lucro, o citado Plano Estadual de Saneamento Básico ainda será totalmente implantado, garantindo no futuro o abastecimento regular de água na Baixada Santista? A resposta, para a tranquilidade dos moradores e dos turistas – ou dos eventuais futuros acionistas da companhia –, está com o governador eleito Tarcísio Freitas. 


(Imagens: gravuras de Jacob Steinhardt)

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