Gestão de resíduos sólidos urbanos: todos devem contribuir

sábado, 5 de agosto de 2023

 

"Para quem medita sobre o inefável, é útil observar que a linguagem pode perfeitamente nomear aquilo de que não pode falar."   -   Giorgio Agamben   -   Ideia da prosa

 

De um modo geral, o capitalismo deve ser considerado como uma economia de custos não pagos, ‘não pagos’ na medida em que uma parte substancial dos custos reais de produção permanecem não contabilizados nas despesas empresariais; em vez disso, eles são transferidos e pagos por terceiros ou pela comunidade como um todo.” (W.William Kapp citado por Madoff & Bellamy Foster, pág. 40)



Falar sobre substituição reuso e reciclagem de materiais parece assunto do passado. Há mais de trinta anos o tema é mostrado pelos meios de comunicação, ensinado em escolas, implantado em empresas e outras instituições; ministrado em cursos, discutido em seminários e congressos; é tema de livros e documentários. Então, qual é a novidade? Não é notícia nova, tanto que em todos esses anos, não cresceu quase nada a taxa de reciclagem dos resíduos contidos no lixo urbano no Brasil. Há cerca de duas décadas, o percentual de resíduos reciclados era cerca de 3% e este pouco mudou até hoje. Segundo dados da Agência Brasil, em 2022 foram gerados quase 82 milhões de toneladas de lixo urbano, dos quais apenas 4% foram reciclados.

Do lixo descartado no Brasil, em média 33% é constituído por materiais recicláveis, segundo dados do “Panorama de Resíduos Sólidos 2021”, publicado pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública (ABRELP), entidade que reúne as empresas coletoras de lixo. A fração de material orgânico do lixo (restos de alimentos, folhagens, etc.) é de cerca de 45%, ainda segundo o mesmo estudo. Os materiais recicláveis são compostos por plásticos (aproximadamente 16%); papel e papelão (10%); vidros (2,7%), metais (2,3%) e embalagens multicamadas (1,4%). Os percentuais pouco variam a cada ano, dependendo de alguns fatores (atividade econômica, novos produtos consumidos pela população, etc.), mas, basicamente, mantêm sua proporcionalidade. Assim, grande parte dos resíduos que seriam reaproveitáveis, podendo ter sido reintroduzidos no processo produtivo primário ou secundário economizando novos recursos naturais, acaba enterrada em aterros sanitários, lixões ou jogada em riachos e terrenos baldios.

Em números absolutos o Brasil é o quarto maior produtor de lixo no planeta, mas é um dos países que menos reciclam materiais, segundo publicações especializadas. Aspectos contraditórios em um país rico, cuja economia é uma das dez maiores do mundo, mas onde 49,9% dos municípios (dados de 2020) ainda despejam seus resíduos domésticos em lixões (depósitos irregulares ou ilegais ainda são cerca de 2,5 mil em todo o país), causando poluição e contaminação de solos e lençóis freáticos. Mais paradoxal ainda, é que mesmo sendo uma das nações que menos reciclam seu lixo, somos o campeão mundial na reciclagem de latas de alumínio (98,7%), resíduo com o melhor preço (cerca R$ 6,00/Kg) no mercado da reciclagem (dados de 07/2023); atividade que se tornou a única opção de sobrevivência para parte da população pobre. Dados oficiais estimam que 800 mil pessoas sobrevivam como catadores no país, e que este número cresceu ainda mais depois da sindemia da Covid-19.

Os lixões, geralmente localizados nas periferias das cidades, além de serem fonte de sobrevivência para milhares de pessoas em condições de pobreza extrema (durante a sindemia da Covid-19 o número de pessoas passando fome no país aumentou de 19,1 para 33,1 milhões de pessoas), são foco de propagação de doenças, abrigando diversos tipos de vetores (insetos, ratos, microrganismos, etc.). Além disso, os lixões e aterros não regularizados são os terceiros maiores emissores de gases de efeito estufa – principalmente o metano, 23 vezes mais poderoso na atmosfera do que o dióxido de carbono –, logo depois dos setores de transportes e agricultura. Isto porque, a componente de material orgânico no lixo doméstico (45% em média) é alimento de bactérias que emitem o gás em seu processo metabólico.

A depender de legislação e instruções técnicas específicas para tratamento do lixo, o país já deveria dispor de um moderno e eficiente sistema de gestão de resíduos, pois não nos faltam estes instrumentos – pelo menos nos últimos 13 anos. Todavia, a sociedade brasileira (a parte dirigente dela) ainda continua atuando como se bastasse aprovar leis para que as situações às quais se aplicam, sejam (magicamente) resolvidas; “aprovada a lei, o problema automaticamente desaparece”. Na área da gestão de resíduos o Brasil aprovou a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) (Lei 12.305/10), na qual constam os objetivos, instrumentos, as informações e as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de resíduos sólidos, incluindo as responsabilidades dos geradores, do poder público e dos demais envolvidos. A fim de instruir todas as partes ligadas ao tema, foi publicado o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) (Decreto 11.043/22); um documento técnico, expondo as ações e tratativas ambientalmente adequadas para lidar com esses materiais. Enquanto o PNRS é lei o PNRS é instrumento técnico.

Segundo o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, “Além do encerramento de todos os lixões, é previsto o aumento da recuperação de resíduos para cerca de 50% em 20 anos. Assim, metade do lixo gerado deverá deixar de ser aterrado e passará a ser reaproveitado por meio da reciclagem, compostagem, biodigestão e recuperação energética. Atualmente, apenas 2,2% dos resíduos sólidos urbanos são reciclados. O plano prevê ainda o aumento da reciclagem de resíduos da construção civil para 25%, incentiva a reciclagem de materiais, contribui para a criação de empregos verdes, bem como possibilita melhor atendimento a compromissos internacionais e acordos multilaterais, e representa passo importante no processo de acessão do Brasil à OCDE. A recuperação de resíduos também proporciona redução do consumo de energia e menor emissão de gases de efeito estufa”. (Plano Nacional de Resíduos Sólidos – Introdução)

Apesar dos anos decorridos desde que se discute o assunto, a despeito das leis, das instruções técnicas, da ação de ONGs e outros agentes, a reciclagem no Brasil parece não avançar, exceção feita a poucas cidades como Curitiba, Santos, Florianópolis e Campo Grande, entre outras, que já dispõem de 100% de coleta seletiva. No restante do país, apenas um em cada cinco municípios tem algum tipo de coleta seletiva, segundo dados da ABRELP de 2020. Apenas as regiões Sul e Sudeste dispõem de serviços de coleta seletiva e iniciativas de reciclagem em mais de 90% de seus municípios, segundo a mesma associação em publicação de 2022. No entanto é preciso considerar que mesmo nestas regiões, a coleta seletiva e a reciclagem ainda são bastante limitadas. Na área de Campinas, no desenvolvido interior de São Paulo, por exemplo, a coleta seletiva não alcança mais que 12%, segundo matéria publicada no site G1 em março de 2022.

Um dos principais gargalos em todo o sistema é a falta de aterros devidamente construídos e regulamentados. Apesar dos prazos para a eliminação dos lixões e aterros irregulares estabelecidos por lei – prorrogados por duas vezes pela Câmara dos Deputados –, dados da Associação Brasileira das Empresas de Tratamento de Resíduos Sólidos e Efluentes (Abetre) de outubro de 2020, informam que 60% dos municípios ainda utilizam lixões. Ainda segundo a associação, o país precisaria construir cerca de 500 aterros sanitários para resolver o problema. Os impedimentos para a implantação de aterros, alegados pelos prefeitos de centenas de municípios brasileiros, presentes a audiências realizadas na Câmara dos Deputados, é a falta de recursos financeiros e capacitação técnica. Grande parte dos municípios não chega nem a ter condições técnicas de elaborar o “Plano Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos”, documento exigido pelo governo federal (atualmente sob responsabilidade do Ministério das Cidades) para que a cidade possa pleitear financiamento para a construção de um aterro sanitário conforme a lei, implantar um sistema de coleta seletiva e de reciclagem dos resíduos.

Outro aspecto é a organização do sistema municipal de coleta seletiva, triagem e reciclagem dos resíduos. Também neste caso são poucas as prefeituras que detêm profissionais qualificados para implantar e, posteriormente, gerenciar este sistema. Ficam as administrações municipais na dependência de empresas de consultoria, as quais, segundo algumas prefeituras, implantam o projeto, mas não repassam a técnica para funcionários da prefeitura.

Mais um aspecto importante na gestão dos resíduos municipais, é o custeio da contínua operação do sistema. Ao mesmo tempo em que se implanta gradualmente o projeto, deve ocorrer uma intensiva campanha de conscientização da população, para que efetivamente a estrutura montada pela prefeitura seja usada pela população e possa atingir seu objetivo, que é dar um destino correto a cada tipo de resíduos, reduzindo seu impacto ambiental.

Resumidamente, o lixo, inicialmente, tem que ser fracionado pelo usuário do serviço (o morador, a empresa) em “lixo molhado”, constituído pelo material orgânico (restos de alimentos, resíduos inaproveitáveis); e “lixo seco”, composto por materiais recicláveis (latas, plástico, papel, papelão, etc.). Depois de coletados estes materiais terão destinos diversos; o material orgânico para compostagem ou diretamente ao aterro, e o material reciclável separado, segundo seu tipo. Os materiais reciclados, na forma prensada ou em fardos, serão destinados aos recicladores; aquelas empresas que os transformarão em nova matéria prima.

Especialistas ainda discutem atualmente se o resultado financeiro da venda do material reciclável pode cobrir os custos de toda a operação, incluindo o trabalho de coleta/separação do material feita pelas cooperativas de catadores. O marco legal do saneamento (Lei 14026/20), aprovado em 2020, já prevê que a sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de limpeza pública deve ser compartilhada pelo usuário deste serviço, através da cobrança de taxas, a “taxa do lixo”. Para evitar problemas ocorridos no passado, quando administrações municipais sofreram grande desgaste perante o cidadão ao instituírem tal taxa (caso da administração de Marta Suplicy em São Paulo, entre 2001 e 2004, quando foi instituída a taxa), a tendência é que as prefeituras passem a incorporar a cobrança no IPTU e que seja um valor equivalente à média mensal de lixo gerado pelo imóvel.

Mesmo assim, argumentam muitos especialistas, a conta não deve fechar. É preciso incluir nesta equação os geradores dos resíduos; os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, como parte do que a PNRS chamou de “Responsabilidade Compartilhada” (empresas, consumidores e poder público). Neste âmbito, algumas associações empresariais já fizeram acordos com cooperativas de catadores, a fim de que estas sejam remuneradas pela gestão dos resíduos gerados pelas empresas, responsabilizando-se pela chamada “logística reversa” destas embalagens. Outra solução defendida por muitos especialistas do setor, é que as empresas paguem uma taxa pela geração de resíduos (embalagens), que seria destinada a um fundo usado para financiar todo o sistema municipal de gestão de resíduos. Esta modalidade de financiamento da gestão municipal de resíduos já é adotada na maior parte dos países europeus e vem sendo implantada também em cidades dos Estados Unidos.

Em maio de 2021, 100 empresas de atuação global que se utilizam de embalagens em seus produtos, reconheceram publicamente que a reciclagem dos resíduos precisa ser financiada pelos produtores e comercializadores dos produtos. Entre os signatários desta declaração estão fabricantes e vendedores de alimentos, cosméticos e outros produtos de consumo, como Coca-Cola, Pepsi, Nestlé, Unilever, Danone, Ferrero, H&M, Henkel, L’Oréal, Mars, Wal-Mart, além de fabricantes e recicladores como Borealis, Mondi, Tetra Pak e Veolia. A ideia central é que a Responsabilidade Compartilhada baseada em taxas, tanto para o consumidor quanto para as empresas, é a única maneira efetiva de propiciar o financiamento dos sistemas de coleta, triagem e reciclagem de embalagens, já que estes processos são mais caros do que a receita obtida com a venda dos materiais reciclados. O financiamento deve ser dedicado, contínuo e suficiente para fazer a economia da reciclagem funcionar e atingir o objetivo de repor matérias primas no processo produtivo e dar destino correto ao refugo. Outras associações empresariais brasileiras não concordaram ainda em aderir à Responsabilidade Compartilhada, fazendo com que a discussão se estenda por mais de dez anos sem que as partes tenham chegado a um acordo.

Já está mais do que na hora de realmente nos preocuparmos e ocuparmos com a gradual resolução da gestão dos resíduos, a começar pelos domésticos urbanos. Querendo ingressar em instituições como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou voltar a ocupar seu espaço entre os países de maior relevância na questão ambiental, o país precisará começar a equacionar a questão dos resíduos e tudo o que está ligado ao tema. Neste contexto, é imperativo que junto com o cidadão e o governo, também as empresas deem sua contribuição financeira, sob o forte argumento de repararem as externalidades econômicas de seus negócios.  

  

Fontes consultadas:

Magdoff, Fred. Bellamy Foster, John. What every environmentalist needs to know about Capitalism. New York. Mothly Review Press: 2011, 187 pgs.

Índice de reciclagem no Brasil é de apenas 4%, diz Abrelpe. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-06/indice-de-reciclagem-no-brasil-e-de-4-diz-abrelpe. Acesso em 27/7/2023

Quase metade dos municípios ainda despeja resíduos em lixões. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-08/quase-metade-dos-municipios-ainda-despeja-residuos-em-lixoes#:~:text=Quase%20metade%20dos%20munic%C3%ADpios%20brasileiros,85%25%20dos%20res%C3%ADduos%20s%C3%A3o%20reciclados. Acesso em 27/07/2023.

Entenda a diferença entre a PNRS e o PGRS. Disponível em https://www.weberambiental.com.br/publicacao.php?nome=entenda-a-diferenca-entre-a-pnrs-e-o-pgrs#:~:text=Enquanto%20a%20PNRS%20%C3%A9%20a,lidar%20com%20os%20res%C3%ADduos%20s%C3%B3lidos. Acesso em 25/7/2023

Plano Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em https://sinir.gov.br/informacoes/plano-nacional-de-residuos-solidos/. Acesso em 25/7/2023

Política Nacional de Resíduos Sólidos. Disponível em https://antigo.mma.gov.br/cidades-sustentaveis/residuos-solidos/politica-nacional-de-residuos-solidos.html. Acesso em 25/7/2023

Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil. Disponível em https://abrelpe.org.br/panorama/. Acesso em 25/7/2023

Reciclagem no Brasil ainda é baixa, mas já existem iniciativas para aumentar nos próximos 18 anos. Disponível em https://www.synergiaconsultoria.com.br/fique-por-dentro/reciclagem-no-brasil/. Acesso em 25/7/2023.

Reciclagem no Brasil: conheça os materiais mais reciclados. Disponível em https://blog.pixpel.com.br/reciclagem-no-brasil/. Acesso em 25/7/2023

O lixo e a reciclagem: fonte de geração de emprego, renda e preservação ambiental. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2022/07/18/o-lixo-e-a-reciclagem-fonte-de-geracao-de-emprego-renda-e-preservacao-ambiental. Acesso em 25/7/2023.

Getting Manufacturers to Help Pay for Recycling. Disponível em https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-09-07/who-pays-to-recycle-our-waste-u-s-states-have-a-new-answer. Acesso em 25/7/2023

100 empresas globais apoiam que produtores paguem coleta e reciclagem. Disponível em https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mara-gama/2021/06/24/100-empresas-globais-apoiam-que-produtores-paguem-coleta-e-reciclagem.htm

Resíduos sólidos urbanos no Brasil: desafios tecnológicos, políticos e econômicos. Disponível em https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/217-residuos-solidos-urbanos-no-brasil-desafios-tecnologicos-politicos-e-economicos. Acesso em 25/7/2023

Número de municípios com coleta seletiva aumentou 29% entre 2010 e 2019. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/numero-de-municipios-com-coleta-seletiva-aumentou-29-entre-2010-e-2019/  Acesso em 25/7/2023

Municípios Não Têm Como Cumprir Lei De Resíduos Sólidos – Será Mesmo?. Disponível em https://portalresiduossolidos.com/municipios-nao-tem-como-cumprir-lei-de-residuos-solidos-sera-mesmo/. Acesso em 26/7/2023



(Imagens: colagens fotográficas de Raoul Hausmann)

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