Natureza imprevisível?

sábado, 19 de agosto de 2023

"Devemos observar nesse ponto de que a física moderna é de certa maneira extremamente próxima das doutrinas de Heráclito. Se substituirmos a palavra 'fogo' pela palavra 'energia' podemos quase repetir suas afirmações, palavra por palavra, de nosso ponto de vista moderno."   -   Werner Heisenberg   -   Física e Filosofia             


O esgotamento irreversível dos recursos naturais finitos deixará as gerações futuras sem possibilidade de utilizá-los. Os recursos naturais são usados no processo de produção — petróleo, gás e carvão como combustível; água na indústria e na agricultura; árvores para madeira e papel; uma variedade de depósitos minerais, como minério de ferro, cobre e bauxita em processo de fabricação; e assim por diante. Os combustíveis fósseis líquidos formam a base dos sistemas de transporte do mundo – automóveis, ônibus, trens, caminhões, navios e aviões. Alguns recursos, como florestas e pesca, são de tamanho finito, mas podem ser renovados por processos naturais se usados em um sistema planejado que seja flexível o suficiente para mudar conforme as condições o justifiquem. O uso futuro de outros recursos – petróleo e gás, minerais e aquíferos em algumas áreas desérticas ou secas (água depositada pré-historicamente) – serão limitados para sempre ao suprimento que existe atualmente. A água, o ar e o solo da biosfera podem continuar a funcionar bem para as criaturas vivas do planeta, somente se a poluição não exceder sua capacidade limitada de ser assimilada e tornar os poluentes inofensivos.” (W.William Kapp citado por Madoff & Bellamy Foster, pág 67).

 

 

O universo em que vivemos, onde de diversas maneiras atuamos durante toda nossa vida, o cosmos no qual a vida se desenvolveu e que segundo a ciência teve início há cerca de 13,7 bilhões de anos, tem um comportamento previsível, quase determinista? É o que parece, a considerarmos as descobertas feitas pela ciência pelo menos até o nível atômico - o misterioso mundo quântico ainda é uma incógnita. A maior parte dos fenômenos naturais, seja no nível físico, químico e biológico, é em grande parte previsível e explicável – ou o será, a continuar o avanço das descobertas e teorias.

Essa é a mais efetiva maneira de conhecer e manipular a natureza; através da atividade humana chamada de ciência. À medida que as descobertas e as explicações aumentam e se tornam mais refinadas, aparecem também incertezas em relação aos conhecimentos passados, apontados por fatos que antes nem suspeitávamos existirem. Na biologia, nas interações entre as diversas espécies e ecossistemas, ainda há muitas lacunas de conhecimento que aparecem à medida que as pesquisas se aprofundam. Descobertas recentes, feitas pelo potente observatório astronômico James Webb, lançado ao espaço em 2022, estão colocando em cheque a teoria sobre a formação das primeiras galáxias, por exemplo. Na física de partículas, na teoria quântica, o desconhecimento e as dúvidas ainda são grandes em diversos aspectos, apesar da crescente consolidação da teoria, através de novas descobertas.

No entanto, na fase de desenvolvimento científico e técnico no qual a humanidade se encontra, já temos um considerável conhecimento do nosso mundo e de seu funcionamento. Sabemos que não existem intervenções mágicas ou sobrenaturais de seres estranhos ou invisíveis (os microrganismos, apesar de invisíveis, são parte do mundo natural). Os acontecimentos de todos os tipos com os quais nos deparamos no dia a dia em nossas diversas atividades, são explicáveis e devem-se à atuação de leis da natureza já conhecidas e dominadas. Assim não há mais espanto com relação à transmissão de imagens e voz a longas distâncias, cirurgias delicadas feitas por robôs, acionamento de teclados de computadores pelos impulsos elétricos da atividade cerebral, por exemplo. Muito menos surpresa ainda com o funcionamento de motores elétricos, os voos de aviões supersônicos, reatores nucleares gerando calor e eletricidade e placas de silício fornecendo eletricidade a partir de luz solar; tecnologias ainda mais comuns e difundidas.  

A previsibilidade do mundo natural também fundamenta grande parte das atividades baseadas na cultura. Diferente dos outros animais, nós, os homo sapiens, criamos uma linguagem, inventamos ferramentas, construímos abrigos, produzimos nosso alimento através da agricultura, elaboramos leis e organizamos estados. Interferimos no mundo natural e humano de diversas maneiras, de modo a assegurarmos uma vida mais segura e confortável; desenvolvemos uma cultura material (ferramentas, tecnologias) e imaterial (leis, religiões, ciências, costumes, arte), para podermos sobreviver em um universo hostil ou, no mínimo, indiferente às nossas necessidades. O filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), um dos criadores do método científico, escrevia que “A verdadeira e legítima meta das ciências é a de dotar a vida humana de novos inventos e recursos.”.

Respondendo à pergunta inicial, consideramos que de modo geral o universo e seu funcionamento é previsível, já que é baseado neste fato que as teorias científicas e a tecnologia que desenvolvemos funcionam. Alguns cientistas e filósofos chegam a afirmar que o universo é determinista e que apenas alguns de seus aspectos se comportam de maneira aleatória. Esta é uma antiga discussão dentro da filosofia, que remonta aos tempos de Demócrito (460 AEC – 370 AEC) e Epicuro (341 AEC – 271 AEC).

Nestas condições a humanidade, dado seu desenvolvimento científico e tecnológico, detêm cada vez mais conhecimentos para evitar ou diminuir o efeito de situações adversas ou melhorar as existentes. Na prática, com base em saberes e experiências adquiridas (que também se transformaram em conhecimento), especialistas e empresas de diversos setores criam equipamentos e produtos cada vez mais eficientes e eficazes, além de seguros e baratos. Da mesma forma aumentam os conhecimentos no campo da medicina e, cada vez mais, doenças e outros males podem ser evitados e combatidos de maneira mais efetiva. Isso para não falar em várias outras áreas, onde o avanço técnico-científico é constante, porém por vezes com efeitos colaterais – as externalidades – indesejáveis.  

Cabe notar, no entanto, que no desenvolvimento de “novos inventos e recursos”, como os citados por Bacon, terão prioridade aqueles que propiciarem um retorno econômico para os agentes que estão investindo recursos no avanço desta ciência ou tecnologia. A pesquisa científica exige atualmente o aporte de grandes volumes de capitais, somente disponíveis a alguns governos e grandes grupos econômicos. Assim, por exemplo, o aperfeiçoamento de um medicamento para curar uma moléstia da qual são vítimas centenas de milhares de pessoas em países pobres, não terá a atenção e prioridade de um fármaco destinado a acelerar o processo de emagrecimento de indivíduos em países ricos. O que geralmente tem o maior peso na pesquisa e no desenvolvimento de uma tecnologia é o seu benefício econômico. É o caso das vacinas contra doenças tipicamente tropicais, que anualmente vitimam milhares de pessoas no hemisfério Sul do planeta, e para a cura das quais os grandes laboratórios do hemisfério Norte têm pouco interesse em alocar fundos para a pesquisa.

O quadro é o mesmo em várias outras situações, para as quais a ciência há muito desenvolveu tecnologias agora largamente disponíveis, mas que por razões econômicas não são aplicadas. Basta falarmos da construção de estações de tratamento de água e esgoto em regiões onde as populações ainda precisam conviver com esgoto a céu aberto e água contaminada. A implantação de projetos de coleta, reciclagem e disposição de resíduos urbanos, cuja falta ainda causa tantas doenças evitáveis e contaminação dos solos. A implantação de políticas de redução ou eliminação de defensivos agrícolas altamente tóxicos (agrotóxicos), mesmo contando com a oposição de amplos segmentos do agronegócio brasileiro, que lucram com a poluição dos recursos naturais. Somente nestas áreas que citamos, diretamente ligadas à proteção do meio ambiente, o bom uso dos conhecimentos científicos e de modernas tecnologias – amplamente disponíveis – poderia evitar destruição e mortes desnecessárias.

No final desta curta digressão concluímos que, pelo menos para efeitos práticos no que concerne à sobrevivência humana no planeta, o universo e a natureza têm um comportamento previsível. Caso contrário, nem nós, nem as outras espécies vivas que nos precederam e as que conosco hoje dividem o planeta, teriam condições de sobreviver. A imprevisibilidade que mais afeta os humanos corre por conta da pequena parcela da humanidade - os famosos 1% - , cujo principal objetivo de vida é amealhar a maior quantidade de recursos possíveis, à custa de seus semelhantes e do planeta. Os efeitos desastrosos deste comportamento causam enormes prejuízos ao restante dos humanos e é imprevisível o estrago que provocarão de maneira crescente ao futuro do planeta.  

 

Referências:

Bacon, Francis. Aforismos sobre a interpretação da natureza e o reino do homem. Editora Nova Cultural Ltda. São Paulo: 2000 254 p.  

Magdoff, Fred. Bellamy Foster, John. What every environmentalist needs to know about Capitalism. New York. Mothly Review Press: 2011, 187 pgs.

 


(Imagens: colagens de Tristan Tzara)

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