Resquiat in pacem

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Morreu enquanto dormia. Acabara de receber o pagamento da segunda parcela de uma causa contra o governo de Pernambuco, que lhe rendera uma indenização de dois milhões de reais. Um rico morreu dormindo. A maneira como quase todos gostariam de terminar a vida.
Talvez esta tenha sido uma das poucas coisas que a vida tenha facilitado para Marcos Mariano da Silva, mecânico, 63 anos ao falecer há poucos dias. Seus problemas começaram em 1976, quando foi preso, acusado de homicídio. As circunstâncias não são muito claras, mas seis anos depois o verdadeiro culpado foi encontrado e Marcos foi solto. Assustador como acontece funcionar a justiça; descaso, lentidão, ineficiência e um inocente passa mais do que o período para a formação de um advogado na cadeia.
O destino às vezes parece escolher certas pessoas para usá-las como exemplo, mostrando como a vida é indiferente ao sofrimento humano. Marcos Mariano dirigia um caminhão por uma estrada três anos depois de sair da prisão, quando foi abordado por um comando policial. Um erro de comunicação entre os órgãos do governo, fez com que Marcos constasse como foragido nos documentos policiais. O pobre homem tentou explicar sua história, contou o que lhe tinha acontecido, mas não adiantou. Marcos Mariano foi preso novamente e lá permaneceu por mais treze anos, sabe-se lá em que condições. Esgotado, contraiu tuberculose e foi abandonado à própria sorte pela mulher e os onze filhos. Como se não bastassem tantos tombos na vida, durante uma rebelião ocorrida no presídio onde se encontrava, Marcos Mariano foi ferido nos olhos por uma bomba de gás lacrimogêneo, jogada pelo Batalhão de Choque. Ficou cego.
A realização de um mutirão judiciário fez com que fosse reconhecida a enorme injustiça que estava acontecendo. Em 1998 Marcos Mariano foi solto e entrou com ação judicial contra o governo do Estado. A  história comoveu de tal modo a opinião pública, que esta exerceu forte pressão para que o caso fosse resolvido. Daí em diante Marcos passou a receber uma pensão mensal de mil reais, até que conseguisse a primeira parcela da indenização milionária.
Nos últimos anos Marcos Mariano vivia com a esposa Lúcia, que conhecera na prisão durante uma tarde de visitas, quando Lúcia acompanhava a mulher de um companheiro de cela de Marcos. Haviam comprado uma casa e tocavam a vida em frente, agora de maneira mais tranqüila. Mas Marcos Mariano havia perdido a alegria de viver, a escuridão da cegueira o atormentava. “Ele me dizia que vivia em um cárcere escuro e daria tudo para enxergar novamente”, conta seu advogado, que defendendo e convivendo com o inocente havia se tornado seu amigo.
O enterro de Marcos Mariano da Silva, este trágico herói sobre o qual ninguém escreveu uma peça, ocorreu ontem, dia 23 de novembro de 2011, no Cemitério de Santo Amaro, em Recife. “Foi como se ele estivesse aguardando a corroboração de sua inocência para poder morrer em paz”, disse seu amigo advogado.
Descanse em paz, Marcos. Nós ainda ficaremos um pouco, tentando remediar e dar um sentido ao absurdo que fizeram contigo.
(Texto baseado em reportagem de Ângela Lacerda para o jornal O Estado de São Paulo, edição de 24/11/2011).

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