Evolução e agricultura

sábado, 29 de abril de 2023

 

"A vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade..."   -   Euclides da Cunha   -   Os Sertões        


Em qualquer comunidade as pessoas defendem prioritariamente seus interesses. Isso é natural, ligado ao instinto de preservação do indivíduo, da família ou do grupo social a que pertença – o clã, a tribo, o clube de futebol, o partido político, a igreja, o bairro onde mora, etc. Por vezes é possível até aderir às causas de outros grupos, desde que haja uma coincidência de interesses. Como, por exemplo, numa guerra na qual diversas tribos, povos ou países se aliam, para derrotar um adversário comum, e depois da vitória voltarem à defesa de seus objetivos específicos – muitas vezes combatendo aliados de há pouco. É assim que as sociedades funcionam desde milênios.

No passado remoto, no período Paleolítico, quando os sapiens ainda não haviam inventado a agricultura e viviam em bandos de caçadores-coletores, esta luta por conflitos de interesses era menor. Os primeiros passos do homem na dominação da natureza muito provavelmente começaram com o uso de paus e pedras para acuar e abater sua caça. Gradualmente, ao longo de dezenas ou centenas de milhares de anos, não sabemos, nossos antepassados descobriram que lascando pedras era possível obter pontas de lanças e objetos cortantes eficientes para fatiar a carne. Em paralelo a este desenvolvimento tecnológico deve ter ocorrido a dominação do fogo, aproximadamente em torno de um milhão de anos no passado.

Diferentemente do que imaginamos, baseados no ritmo das mudanças em tempos modernos, tais avanços tecnológicos no uso das ferramentas ocorriam muito vagarosamente. Silvana Condemi, paleoantropóloga e François Savatier, jornalista especializado em ciências, em seu livro Neandertal, nosso irmão – Uma breve história do homem escrevem que “a modelagem dos utensílios de pedra neandertais era complicada e sutil (...)” e que “(...) Curiosamente, o conjunto dessas técnicas - a que os pré-historiadores nomeiam indústria musteriense – se manteve quase idêntico por 300.000.” Os aperfeiçoamentos das ferramentas ocorriam de forma bastante vagarosa, ao longo de centenas de gerações. Assim, durante milênios, nossos antepassados – para a formação do homem moderno contribuíram diversas espécies de hominídeos do grupo homo – foram aperfeiçoando, através da prática, a eficácia de suas técnicas de sobrevivência.

Dentro destes antigos agrupamentos hominídeos e humanos, os bandos, quase não havia pelo que lutar, já que inexistiam propriedades e quase tudo era de uso comunitário. É o comunismo primitivo, ao qual Friedrich Engels faz referência em sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado mostrando a ausência de Estado e das classes sociais. Outro autor a tratar do tema, é o cientista político americano contemporâneo Francis Fukuyama, que em seu livro As origens da ordem política escreve:

“Dentro de um grupo local de bando não há nada que se assemelhe às trocas econômicas modernas, nem nada parecido com o individualismo moderno. Não havia nenhum Estado para tiranizar as pessoas nesta fase do desenvolvimento político; na verdade os seres humanos experimentavam aquilo que o antropólogo social Ernest Gellner chamou de ‘tirania dos primos’. Isto é, seu mundo social se limitava aos círculos de parentes que determinavam o que fazia, com quem se casava, como adorava Deus e praticamente tudo o mais na vida. As atividades de caça e coleta são realizadas por famílias ou grupos de famílias.” (Fukuyama, pág. 72).

Premido pelo gradual desaparecimento de caça, que começa a rarear e se afastar para regiões setentrionais mais frias com o final do último período glacial há cerca de 10 mil anos, os humanos, provavelmente as mulheres destes bandos, inventaram ou descobriram a agricultura. Presume-se que este processo ocorreu através da observação do crescimento de plantas, cujas sementes coletavam e consumiam. Onde no verão passado tinham deixado cair sementes de um vegetal; trigo, arroz, sorgo ou painço, agora haviam plantas destas mesmas gramíneas. Assim, o que fizeram, foi repetir o procedimento em escala maior com o objetivo de obter grande número de sementes, o que funcionou. No período de cerca de 10.000 AEC até 4.000 AEC, segundo o biólogo Edward O. Wilson em seu livro The social conquest of Earth (A conquista social da Terra), a agricultura e a domesticação de animais foram inventadas de maneira independente em oito locais do planeta. Nas Américas, entre os indígenas do Leste dos Estados Unidos, aproximadamente em 4.000 AEC; na Mesoamérica em 8.000 AEC e na costa Oeste da América do Sul em cerca de 7.000 AEC. Na África subsaariana por volta de 7.000 AEC e no Oriente Médio em 9.000 AEC. Na Ásia entre 8.000 e 7.500 AEC (na China, em dois locais) e em 6.500 AEC na Oceania (Nova Guiné). Sobre esta segunda revolução (a primeira foi o domínio do fogo) na história da espécie humana escrem os especialistas Mazoyer e Roudart:

Entre 10.000 e 5.000 anos antes da nossa Era, algumas dessas sociedades neolíticas tinham, com efeito, começado a semear plantas e manter animais em cativeiro, com vistas a multiplica-los e utilizar seus produtos. Nessa mesma época, após algum tempo, essas plantas e esses animais especialmente escolhidos e explorados foram domesticados e, dessa forma, essas sociedades de predadores se transformaram por si mesmas, paulatinamente, em sociedades de cultivadores.” (Mazoyer & Roudart, pág.70).

Em algumas localidades do planeta, notadamente na China, no Oriente Médio e na Mesoamérica, a invenção da agricultura levou também à formação de grandes centros urbanos. A partir do V milênio AEC a região situada entre os rios Tigris e Eufrates, na Mesopotâmia (atual região compreendendo o Iraque, parte da Síria e do Irã), viu o aparecimento de dezenas de cidades que ao longo dos séculos seguintes evoluíram para cidades-estados. Nelas, em paralelo ao desenvolvimento político, a religião também tomou formas mais sofisticadas: surgiram as divindades protetoras das cidades, em torno das quais se organizou um corpo de sacerdotes que gerenciava toda produção agrícola, sua armazenagem e distribuição. Os religiosos também detinham o monopólio do conhecimento da época, como a matemática, a medicina a astronomia e a arquitetura da construção de templos. As cidades-estados também instituíram os primeiros exércitos formados por guerreiros profissionais, mantidos pelo Estado. Em suma, uma estrutura politico-administrativa cujo objetivo era manter a hegemonia da elite governante e da elite religiosa, através do trabalho do povo na agricultura e outros serviços necessários à cidade (oleiros, marceneiros, pedreiros, carregadores, balseiros, etc.). Desta estrutura político-social e econômica, que se espalhou por outras regiões do globo, evoluíram os primeiros impérios e se desenvolveram novas tecnologias agrícolas, de construção, de metalurgia, navegação, bélicas, etc., e avançaram os conhecimentos teóricos, ao longo da história humana até hoje. Tudo começou com a invenção da agricultura.

No entanto, há historiadores que apontam para o fato de que a invenção da agricultura não trouxe somente benefícios para a humanidade. Escreve o historiador Yuval Noah Harari em seu clássico Uma breve história da humanidade:

“Os caçadores-coletores conheciam os segredos da natureza muito antes da Revolução Agrícola, já que sua sobrevivência dependia de um conhecimento íntimo dos animais e das plantas que coletavam. Em vez de prenunciar uma nova era de vida tranquila, a Revolução Agrícola proporcionou aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos gratificante dos caçadores-coletores. Estes passavam o tempo com atividades mais variadas e estimulantes e estavam menos expostos à ameaça de fome e doença. A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma dieta melhor ou mais lazer.” (Harari, pág. 89).

Ficam algumas perguntas que, baseados nos conhecimentos que hoje temos das ciências podemos fazer, como:

A humanidade teria sobrevivido se não tivéssemos desenvolvido a agricultura?

Na condição de nômades caçadores-coletores, teríamos desenvolvido uma tecnologia sofisticada, aumentando as possibilidades de sobrevivência?

Por quanto tempo a espécie homo teria perdurado, já que as fontes de alimentação estariam cada vez mais escassas, como provam extinções de animais provocadas por nossos antepassados?

Sem a invenção da agricultura, muito provavelmente não estaríamos aqui hoje.


Fontes consultadas:

Silvana Condemi e François Savatier. Neandertal, nosso irmão – Uma breve história do homem. Editora Vestígio. São Paulo: 2018, 236 p.

Fukuyama, Francis. As origens da ordem política. Editora Rocco. Rio de Janeiro: 2013, 589 p.

Wilson, E.O. The social conquest of Earth. Liveright Publishing Corp. New York, NY: 2012, 331 p.

Mazoyer, M. Roudart L. História das agriculturas no mundo – Do neolítico à crise contemporânea. Editora Unesp. São Paulo: 2008, 567 p.

Harari, Noah Yuval. Sapiens – Uma breve história da humanidade. L&PM Editores. Porto Alegre: 2012, 459 p. 


(Imagens: pintura primitivista americana)

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