da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

De marqueteiro a ideólogo

(Artigo de Maria Sylvia Carvalho Franco, publicado no caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo em 2/12/2012)


Ao projetar seu pragmatismo radical na política e na ética, João Santana orienta a prática partidária do PT

A mácula da escravidão persiste, prenhe de racismo: João Paulo Cunha, condenado pelo STF, alega que Joaquim Barbosa foi indicado "porque era compromisso nosso, do PT e do Lula, de reparar a injustiça histórica com os negros"; isto é, foi nomeado pela cor e não por mérito. A escolha do ministro soa como favor não retribuído, esquecendo-se Cunha de que "não se pode ser grato com a toga" (Ayres Britto). Para compreender a ofensa ao juiz, cabe lembrar o sentido moderno da escravidão, o modo como se entranhou na sociedade brasileira. Há tempos, desenvolvi a tese de que a escravidão moderna fora constitutiva do sistema capitalista, inerente à correlata ordem sociopolítica. Articulada ao capital nos mercados europeus, a produção nas colônias expandiu-se em termos absolutos: a grande propriedade abriu vastos recursos fundiários e a escravidão alimentou, veloz, a fonte inexaurível do trabalhador cuja expropriação deu-se de chofre, ao passo que esse processo corria, lento, nos mercados europeus. Esse nexo essencial entre escravidão e capital desdobrou-se de ponta a ponta na cultura brasileira.

Nesse caldo, o grupo dominante não teve limites ao poder, aliado a célere enriquecimento. Para cronistas do século 19, "ganhar dinheiro é seu único motto, sua única palavra de ordem", compreendendo "importação de mercadorias adulteradas, tráfico de moeda falsa e contrabando de escravos", fortunas feitas por "meios desonestos, por assassínios, furtos e estelionatos". Joaquim Nabuco sustenta: "Em nossos dias tudo parece sujeito a transações. A alma humana é posta em leilão".

O nó entre ética do vale-tudo e escravidão atingiu os homens livres e pobres. Alijados da produção mercantil e da posse fundiária, carentes de firmes vínculos coletivos, tornaram-se andarilhos solitários em violento universo de penúria. Os nexos entre ricos (fazendeiros, políticos, mercadores, governantes) e remediados (sitiantes, clientes, agregados, capangas) teceram, como favor, a dominação pessoal: suas contraprestações entrelaçam dádivas de amizade e parentesco, apoio econômico e amparo social, retribuídos por adesão política. Daí resultam lealdades e compromissos que estiolam a consciência do mundo social, concebível apenas mediante a encarnação do poder transfigurado em benefício para o subalterno. Firma-se a brutal alienação assim produzida: as figuras do favor não provêm do patrimonialismo obsoleto, como se aventa, mas da prepotência moderna.

O compadrio move essa engrenagem no Estado: o que de melhor fazer, a um afilhado, "senão provê-lo de um emprego público?" Fácil é manter influências "criando novos cargos e novos funcionários", notam cronistas do século 19. Monta-se a máquina administrativa, motriz da corrupção, induzida por nosso ilusório pacto federativo. No Império, a técnica de concentrar fundos locais no Executivo central exauriu os municípios a ponto de seus vereadores empregarem recursos próprios em obras públicas. Esse empenho de valores privados na esfera estatal tinha retorno coerente: "Se uso meus bens para encargos oficiais, por que não usar os do governo para meus fins?". Hoje, aprimorando esse vezo, os edis "negociam" recursos, mas nada colocam de seu e pilham, não raro, algo do butim.

Essa sinopse das práticas autoritárias ilumina a trama de favores e dinheiros, multiplicada a partir de um núcleo forte, em redes de parceria e cumplicidade. Hoje, pretensos benefícios atraem multidões fiéis ao benfeitor imaginário que, de fato, as aprisiona. A propaganda amplia o confisco da autonomia, suscitando a adesão mecânica ao herói protetor. Personagem mítico, é produzido por marqueteiros, como João Santana, que se esmera em transformar Dilma em Dama de Ferro e Haddad em Jovem Turco. Essa retórica opera na aparência: exemplo disso é o fantasma da "nova classe média", endividada na compra fácil de produtos industrializados, mas carente de moradia, face às condições leoninas do Minha Casa, Minha Vida - o candidato ouve, do agente bancário, o conselho de procurar uma "empreiteira acostumada a trabalhar com a Caixa". Empresários, não o povo, são beneficiários desses programas. Essa sofística chega a pautar a imprensa, que tragou a falaciosa invenção do "novo" apenso a Haddad, cria de Lula, formidável sobrevivente e chefe autoritário à moda antiga, mantido pela oligarquia sindical e outras mais rançosas. Nada de inédito nesses vultos e em outros delfins herdeiros de vetustas linhagens.

Entretanto, o devaneio de João Santana, em recente entrevista - conjugar Dilma presidente, Lula governador, Haddad prefeito -, não conta com o real e perigoso desenlace da onipotência - a morte do rei, ou do pai - com os anseios da progênie minando a hegemonia do protetor. Lula sitiado pela corrupção de seus ministros e auxiliares dá asas aos afilhados cobiçosos e justifica romper seus votos de lealdade. Doutro lado, o patrono escuda-se e desampara os que perderam serventia. No traiçoeiro utilitarismo que manipula sentimento e razão, frágil é a generosidade de quem dá, tíbia a gratidão de quem recebe. Ao projetar os espectros do pragmatismo radical na política e na ética, valendo-se do imaginário vulgar e dos vícios da oligarquia brasileira, Santana orienta a prática partidária e passa de marqueteiro a ideólogo do PT. Seu sectarismo lhe permite reduzir as sessões do STF a "reality shows", atribuindo-lhes, assim, a falta de escrúpulos dessa mórbida exploração da curiosidade. Mais grave, esse espetáculo fere preceitos constitucionais, como o direito à privacidade, à intimidade e à honra. Essa violência arbitrária conjugada a alvos financeiros espezinha a dignidade humana. A analogia de Santana, portanto, atribui a violação das garantias inalienáveis da pessoa àqueles que receberam o mister de zelar pela Constituição. Essa arrogância o conduz ao "dever" de alertar os ministros contra o tóxico "excesso midiático", veneno do qual ele próprio abusa.

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO É PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA USP E DA UNICAMP

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